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Manipulação de material genético e as suas consequências práticas e jurídicas
O presente artigo científico versa sobre as ciências biomédicas em confronto com o Direito, demonstrando-se o complexo ônus do equipamento jurídico prático se mostra desatualizado e despreparado para equacionar em plenitude eventuais complicações decorrentes da carência de textos legais que tratem sobre a genética humana. Quando pensamos no direito em relação à saúde, temos que considerar a judicialização desta. Assim, com o presente, objetiva-se encorajar meios para previsão e precaução ante o surgimento de consequências prejudiciais que a prática deliberada de manipulação do DNA humano pode, irreversivelmente, trazer. Resta assim, evidente, o papel das Ciências jurídicas em estruturar, prevenir e reverter tais possibilidades de modo a contribuir para a segurança jurídica na saúde e todos os demais direitos a todos nós. Certo é, que o fato sempre vai anteceder a norma, dificilmente, senão impossível, uma norma irá prever e anteceder na plenitude das possibilidades, um fato futuro. Sendo essa uma regra geral, tanto para o direito, até mesmo medicina e etc. Diante do avanço da biotecnologia e da biomedicina, nos vemos diante de práticas avançadas de intervenções de natureza biológica e genética, que constituem patrimônio coletivo da humanidade, que devem ser tuteladas e regulamentadas para que não ocorra equivocadamente consequências prejudiciais e irreversíveis, de ordem jurídica, social e ontológica na sociedade contemporânea. O método de pesquisa usado no referente artigo foi utilizando-se de bibliográfias, artigos científicos e outros documentos de especialistas da área.
Biodireito
INTRODUÇÃO Práticas de natureza eugênica já eram utilizadas desde a Grécia antiga nos moldes da polis espartana, remontando a busca pelo aprimoramento físico dos soldados do exército desde os primórdios. Onde, os anciões instrumentavam através da seleção de crianças consideradas perfeitas, o melhoramento do patrimônio genético de seus cidadãos. Descartando assim, os considerados portadores de qualquer tipo de deficiência, deformidade ou imperfeição seguindo um rigoroso critério utilitarista para combate (SNELL, 2012). Em meados do século XVIII, uma norma universal trazia embutido uma nova visão ontológica aplicada à ciência que em contato com o mundo financeiro e empresarial implanta na sociedade e na cultura por meio das instituições políticas, diretrizes que contribuiram para a destruição do real conceito ontológico de ser do ser humano (PIETRO 2002). Assim, é retirado o ser do ser humano, e no lugar é implantado o sujeito e a razão. Arrancando, o homem da sua realidade apofática, divina e lançando-o no mundo material. E com isso, a consequente destruição de ser do ser humano, tornando-o mais materialista e trazendo decadência à pureza humana (PIETRO 2002). Contudo, a teoria eugênica surgiu e se institucionalizou no século XIX, apesar de a eugenia ser muito atrelada a Hitler, o termo eugenia foi criado em 1883, pelo inglês antropólogo chamado Francis Galton, primo de Charles Darwin, fascinado pela genialidade, herança biológica e pela teoria da seleção natural capaz de aprimorar a genética humana, ou seja, de que utilizando-se de cruzamentos seletivos, obter as rédeas da evolução humana (CRUZ, 2012). No final do século XIX e início do século XX, nos Estado Unidos, 30 (trinta) estados adotaram leis que buscavam a ideia de reprodução seletiva. E previam, a esterilização de pessoas acometidas de epilepsia, retardos mentais, tendências criminais ou consideradas indignas, para que não se reproduzissem (CRUZ, 2012). No ano de 1927, foi proferida uma decisão histórica sobre a constitucionalidade de se esterilizar uma pessoa por eugenia. Carie Buck era uma mulher, de Virgínia, e vivia como interna em uma colônia estatal para epiléticos e débeis mentais. O superintendente dessa Colônia era Jhon Bell, que acreditava que ela e sua família não deveriam se reproduzir. O caso chegou à suprema Corte americana e os juízes acreditaram que, tanto a Carie Buck como a mãe dela eram “débeis mentais” e “delinquentes moral” (CRUZ, 2012). Então emitiram uma decisão com 8 votos a favor da esterilização, contra apenas um voto que não foi a favor. Um dos votos, em específico chamou mais atenção.[1] O juiz Oliver Wendell Holmes Jr., acrescentou uma declaração que acabou ficando famosa: “Três gerações de imbecis são suficientes” (JUSTIA, 2019). Portanto, presume-se que tal prática respaldada na jurisprudência era permitida, ou seja, o expresso entendimento de que qualquer pessoa que viesse a ser considerada como um obstáculo à sociedade pudesse ser esterilizada. Dados da época apontam que cerca de 60 a 70 mil pessoas foram esterilizadas. Não sendo um fato isolado, mas que repercutiu à época na sociedade científica de todo o mundo (CRUZ, 2012). Chegando-se após, ao ponto, em que a teoria eugenista foi tão aceita na busca da pureza racial que, certo ex-líder partidário alemão, também desejou a criação de uma raça superior, a Ariana. E sabe-se que o seu intento era ser clonado junto com a sua raça, para tanto recorreu à busca de tecnologias. O que culminou no holocausto alemão. Há quem diga que isso jamais ocorreria novamente, mas há quem tenha medo dessa, terrível ideia voltar à tona. O que evidencia tamanha importância de preventivamente tutelar esse assunto com muita precaução.   1.1 Clonagem de ovelha Por muito tempo, a clonagem se restringia à época apenas a plantas e protozoários. Muitos sequer acreditavam na possibilidade de clonagem em mamíferos, porém no ano de 1996 um feito chocou muitas pessoas do mundo da genética. O Doutor Escocês Sir Ian Wilmut, do Instituto Roslin de Edimburgo, havia acabado de realizar o impossível. Era criada a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula somática. Depois dela outros mamíferos também foram clonados (PEREIRA, 2015).   1.2 Clonagem de primatas Em 2018, pela primeira vez cientistas na China clonaram dois macacos chamados Zhong Zhong e Hua Hua, através da mesma técnica utilizada com a ovelha. Esse método também já tinha sido aplicado à outros animais, como cães e ratos, mas estes são os primeiros primatas clonados a partir da transferência nuclear das células somáticas. Sendo um grande passo no caminho para sua utilização em seres humanos (PEREIRA, 2015).   1.3 Manipulações genéticas em humanos No final do ano de 2018, surgiu a notícia de um Congresso que ocorreu em Hong Kong, o caso do cientista geneticista chinês He Jiankui[2] ganhou repercussão após obter êxito em modificar geneticamente os embriões de três bebês. Para entender a técnica, imagine  uma espiral dentro de nossas células formada por compostos orgânicos, como se fossem “pecinhas” que encaixadas uma, nas outras, formam o código que chamamos de DNA. Este código genético define nossas características e o que nós vamos passar para nossos filhos. Enfim, animais, plantas, todos os seres têm o seu próprio DNA. Sendo a técnica de extrema precisão. É possível mudar uma única letra entre centenas de milhares de códigos. E mutações de uma única letra podem causar mudanças bruscas por exemplo (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014). As aplicações são infinitas. Com isso, podem editar o DNA de plantas, animais e até seres humanos. Um biólogo brasileiro da UNESP, que dentre outros cientistas não está sozinho, utiliza o CRISPR para alterar carrapatos, mosquitos como Aesdes Aegypt e anopheles, no futuro produzir insetos resistentes à vírus como o da Zika, malária, dengue, bem como da febre maculosa. Um estudo recente que usou o CRISPR contra a AIDS mostrou que é possível reduzir o material genético viral dentro das células brancas do sangue. Com isso, teria nascido 2 (duas) meninas gêmeas, fruto dessa modificação após as experiências. E ainda, há um menino em gestação, portanto o DNA deles foi modificado para que eles sejam naturalmente resistentes ao vírus HIV e outors, já que seus pais eram soropositivos. A técnica conhecida como tesoura dos genes, traz a possibilidade de editar e escolher a cor e tipo do cabelo do bebê, dos olhos, da pele e que sejam sempre saudáveis. O CRISPR abre espaço para criação de humanos trangênicos com potencial de auto cura ampliada. Essa auto regeneração ampliada poderia solucionar a questão internacional do comércio ilegal de órgãos (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014). É também capaz de acabar com tumores dos mais variados, assim como, problemas genéticos como epilepsia, glaucoma, diabetes, parkinson, dores crônicas, escleorose mútipla, autismo e a Síndrome de Donw, dentre outras (NAMBA, 2009). Uma equipe Chinesa já começou a testar as técnicas em pessoas com câncer no pulmão, modificando seu sistema imunológico. Há também, um caso, marco bem postivista para o avanço, de uma menina que foi salva da leucemia ao tirarem seu sangue, editá-lo, e colocá-lo de volta por um precursor do CRISPR. A citada técnica, aparentemente, seria mais acessível, economicamente falando, em face das outras técnicas que já existiam para modificação genética. O que poderia facilitar o acesso de algumas pessoas da população para este tipo de procedimento (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014).   1.4 Quimera humana Em meados de 2019, cientistas espanhóis reproduziram, na China, um ser que é a mistura do genes humanos com o genes de macacos, visando o transplante de órgãos. Bem sucedido, o experimento só foi interrompido por vontade dos cientistas, que assim o fizeram, com a validade vital limitada para até o 14º dia (MUNHOZ; MAIA, 2019). Suponhamos, que semelhantemente ao bebê de proveta, tal técnica criasse tamanha repercussão em nossa realidade. Sem dúvidas, daqui algum tempo ela se tornaria comum. Devemos nos preocupar com a questão da consciência que esse ser possivelmente terá? Qual das consciências (humana ou animal) predominaria nesta personalidade e tendo isso em vista, qual a possibilidade aceitável de se extrair órgãos? Qual seria o critério determinante para essa diferenciação? Esse ser teria personalidade jurídica plena para reger sozinho os atos de sua vida civil ou ficaria restringido aos direitos dos animais? Se, possuidor de capacidade jurídica, teria a faculdade de ter seus órgãos transplantados? Analisando superficialmente, em tese, não seria possível obter tal diferenciação do que ocorre no subjetivo deste ser e dos subsequentes. A quem esse tipo de recurso seria acessível em nossa realidade extremamente capitalista? Isso poderia se tornar um novo mercado clandestino (biohackers)? São indagações ainda sem respostas atualmente para cientistas, filósofos e autoridades que acompanham o avanço da biotecnologia e a diversidade humana em experimentos manipulado pelo homem, não existindo respostas suficientemente concretas. Seria viável essa estreia, em detrimento da inovação da impressora de órgãos em 3D, ao invés de gerar um ser criado para isso? Essa discussão é pertinente, ante a chance de se imprimir um órgão específico, sem a necessidade de sacrificar um organismo vivo para tanto (MUNHOZ; MAIA, 2019). Atinente a este panorama explanou DARWIN (1826) que não seria o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças (NAMBA, 2009).   Em recente convenção da ONU sobre a moratória no propulsor genético. Target Malaria recebeu permissão do governo de Burkina Faso para conduzir o primeiro teste com mosquitos alterados geneticamente em 2019. Nova Zelândia bateu recordes de calor em 2018, levando a uma maior população de roedores, por isso o governo atual deteve o financiamento dessa tecnologia em prol de outros métodos para resolver a questão do desequilíbrio ambiental até 2050. No Brasil o então saudoso embaixador Antônio Augusto de Lima, bem como o ex ministro das relações exteriores, o ministro Figueiredo, tiveram papeis decisivos em alguns artigos, onde pautava-se que a saúde não era um bem a ser adquirido e sim um direito fundamentalmente humano, gerando grande contrariedade face aos países do hemisfério norte. Assim, a bioética latino americana se consagrou anti hegemônica (GARRAFA, 2003). Um dos percussores da bioética aqui no Brasil publicou o projeto chamado “mercado humano: o estudo bioético da compra e venda de partes do corpo”, publicado pela UNB conjuntamente com Giovani Beringheli um italiano, umas das maiores autoridades da saúde pública e patrono da reforma sanitária brasileira (GARRAFA, 2003). Com isso, o estudo dessa matéria evoluiu, e adquiriu conceitos e classificações doutrinárias, como por exemplo, a diferenciação dos métodos eugênicos, que se distinguem como eugenia negativa e eugenia positiva (SUBTIL; 2016). Com essas duas atitudes na eugenia é possível influenciar no papel do próprio direito em relação à espécie humana. Isso desvela também, a problemática da relação entre o direito e a ética, no sentido de que o direito poderia servir como um instrumento de contra eugenia, quando detectada essa vontade do ser humano de instrumentalizar a própria espécie, através de uma eugenia positiva, no sentido de alterar a própria genética humana, na intenção de atingir a perfeição (SUBTIL; 2016). Novos estudos jurídicos foram realizados, trazendo descobertas fundamentais na atuação das ciências biomédicas que são hoje examinadas ao lado dos Direitos Fundamentais devido ao furor da repercussão causada por este tema que paraleliza o vital equilíbrio entre a vida humana, a ética e os direitos dos cidadãos (CARDIA, 2000). Para tanto que as gerações dos Direitos Fundamentais. A busca é o equilíbrio: as normas não podem impedir o progresso científico, e este, não pode passar por cima dos direitos que foram conquistados (CARDIA, 2000).   2.1 Dos princípios de direitos fundamentais envolvidos Basicamente, os instrumentos de proteção do indivíduo em face da atuação do Estado. É o mínimo necessário para que o indivíduo tenha uma vida digna. Os direitos fundamentais estão previstos em nossa carta magna, tratados internacionais, acordos, princípios, dentre outros (JUNIOR, 2017); A título, temos o artigo constitucional que ressalta em seu art. 225, §1º, II e §4º que:   Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;   Dos princípios, estes são divididos pela doutrina em gerações, com base em momentos e conquistas históricas. Assim, as dimensões são indivisíveis e preceituadas por lemas revolucionários surgidos no século XVIII, da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. E com fulcro nesse desenvolvimento é possível acomodar a cada uma das dimensões dos direitos que classificam-se em:   2.2 Do Patrimônio genético nacional A lei nº 13.123/2015 (Lei do Patrimônio genético) junto ao Decreto nº 8.772/2016, constituem o novo marco legal da biodiversidade, que autoriza independentemente de licenças prévias as pesquisas com patrimônio genético, assim como fabricação de produtos usando de biodiversidade brasileira, bastando apenas seja feito um cadastro eletrônico. Para então serem realizadas pesquisas de desenvolvimento tecnológico realizado sobre amostra ou informações de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas, incluindo espécies de outra natureza e substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos, que estarão nos termos fixados, sob a gestão, controle e fiscalização da União (art. 2°, §único). Proibindo expressamente em seu art. 4º que tais direitos e obrigações relativas a esta Lei se apliquem ao patrimônio genético HUMANO. Vedando ainda o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado para práticas nocivas ao meio ambiente, à reprodução cultural, e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas. A legislação contempla, regula e protege os interesses de nativos e comunidades locais, bem como confere segurança jurídica à interesses de empresas que pretendam explorar produto resultante do acesso às biotecnologias do patrimônio genético nacional e do conhecimento tradicional associado.   2.3 Pesquisas científicas em humanos A proteção dos participantes de experimentos com seres humanos, é feita pelo sistema CEP/CONEP, integrado pela Comissão Federal de Ética em pesquisa do Conselho Nacional de Saúde e pelos Comitês de ética em pesquisa, dois órgãos que cooperam de forma coordenada e descentralizada por meio de um processo de acreditação (MUNHOZ; MAIA, 2017). Atualmente, a Resolução que norteia as pesquisas com seres humanos é a 466/2012 e também a conjuntamente com a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de saúde, que estabelecem diretrizes bases para as pesquisas das ciências humanas e sociais, e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, apoiadas na resolução 196/1996 que determinará como irá funcionar a Comissão de ética em pesquisa que é a CONEP (SAÚDE, 2012; 2016). A princípio, a resolução de 2012 estabelece que estão incorporados à resolução, os princípios da teoria da bioética principialista, como autonomia; não maleficência; beneficência; justiça; equidade; dentre outros (SAÚDE, 2012). Essa resolução é pertinente, pois demonstra que os órgãos de controle e fiscalização da medicina, já estão se debruçando e estudando, de forma a buscar o bom andamento desse processo evolutivo (MUNHOZ; MAIA, 2017).   2.4 Manipulação de genes Para manipulação genética, a resolução 2168 do Conselho Federal de medicina publicada em 2017, determina que não pode ser feita reprodução assistida para escolha das características fenotípicas, como o sexo do bebê, a cor do cabelo, a cor dos olhos e etc. (MEDICINA, 2017). Por serem antiético e ilegais, é vedado esse tipo de manipulação. Somente sendo permitida a manipulação, para, por exemplo, se extirpar uma doença da família, conforme a resolução do Conselho Federal de medicina (MEDICINA, 2017). Isso para viabilizar que a reprodução seletiva ocorra de forma natural, para que assim a evolução da espécie ocorra naturalmente e não crie um cenário antiquado (MUNHOZ; MAIA, 2017).   2.5 Doação de embriões No Brasil, não temos uma lei especifica que trate da doação de embriões, somente há uma norma administrativa que é a Resolução 2121/2015, ela fala especificamente sobre a reprodução assistida e viabiliza a doação de gametas e embriões, porém vedando a comercialização, em outras palavras, a saúde não pode ser mercantilizada. Dos artigos 5º e 15 da Lei de Biossegurança publicada em 2005, extrai-se mesmo entendimento (LEI Nº 11.105/2005):   Art.5º. É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. Pena: reclusão, de 3 a 8 anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.   3.1 Convicções religiosas Com tal intervenção humana, dilemas morais, éticos e religiosos, passaram a ser discutidos. Muitos condenam, como por exemplo, alguns religiosos que consideram como uma ação de brincar de Deus e contrária aos aspectos éticos que nos regem. Desde os primórdios, a criação de uma pessoa vem sendo tradicionalmente feita através da união de um homem e uma mulher, e ambos geram um filho. Isso tem sido assim desde quando começamos a ouvir e falar sobre o assunto e nunca tivemos relato de um processo diferente desse, da qual desconsidera-se qualquer intervenção Divina. E quando o homem julga e sente ser Deus ele desestabiliza e prejudica a si próprio (VOGT, 2001). O Fundador do projeto Genome Evolution, o doutor Youseff Edwardo afirma, que não estaríamos criando vida, mas apenas, a melhorando. E como defensor da fé no Criador e Salvador, sou defensor da vida e de tudo que é feito para seu benefício (VOGT, 2001). O filósofo materialista francês SPONVILLE (1999), disse que a humanidade é recebida antes de ser criada ou criadora. Ela é natural antes de ser cultural. É-se homem por ser filho do homem. Ser filho de um homem e uma mulher faz do ser humano uma experiência única, irrepetível. Manipular isso seria acabar com essa singularidade. Estaríamos diante da nova era na Medicina, próximos, quem sabe, de descobrir o segredo da imortalidade.   3.2 Dignidade Conforme o filósofo alemão KANT (2001), o homem é um fim em si mesmo e não um meio. Essa intervenção transformaria o homem em um meio, um produto. E a medida que fazemos isso retiramos dele toda sua dignidade. Ainda mais quando fazemos dele um meio doador de órgãos. Esta seria a razão para as ações tendenciosas do ser humano, já que o conceito ontológico e filosófico de ser do ser humano veio sendo desconstruído gradativamente através da fragilização das relações humanas no tempo, prejudicando assim, a transmissão de valores que realmente importam (PIETRO 2002). Com isso, a ideia de se criar uma nova biotipologia para a humanidade, dentro de um novo mundo racial foi facilmente concebida como um dos principais tópicos dos movimentos revolucionários, destruindo assim o conceito ontológico de ser humano (PIETRO 2002). Diante deste panorama iminente e gravíssimo, necessário se faz frisar que não podemos confundir os meios os quais toda essa proposta de ontologia foi sendo implantada, com os fins. Preceito este constitucionalmente tutelado, conforme dispositivo legal abaixo (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 1º da CF: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;   3.3 Perfeccionismo Isso desvela a problemática da relação entre direito e ética, no sentido de que o direito poderia servir como um instrumento de contra eugenia, quando detectada essa vontade do ser humano de instrumentalizar a própria espécie, através de uma eugenia positiva, a fim de alterar a própria genética humana, na intenção de atingir a perfeição (ROCHA, 2019). Essa brusca mudança irreversível advém da proposta da criação de um novo biótipo humano em laboratório, sob o controle estrito e restrito de empresas multinacionais autorizadas pelo ordenamento normativo jurídico internacional que foi sendo implantada pelos governos e autoridades locais e tudo isso em nome da declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos adotada pela conferência geral da UNESCO na sua 29ª sessão (UNESCO, 2006). No mesmo sentido desse descaso coletivo, existe uma vasta literatura, iconografias e filmes posicionados inequivocamente frente a direção da construção de um novo tipo de ser humano, porém limitados a tratar do assunto sob o selo de ficção, como se fosse teoria da conspiração, mesmo tendo ciência de que este processo já está em andamento, portanto é de se presumir a já existência de uma nova raça humanoide dentro do planeta. Pretensão essa que quase passou despercebida. (ROCHA, 2019). O que está em pauta é a criação de um novo tipo de ser humano que não é um ser humano, e sim um tipo humanoide criado em laboratório, bem como pelo pesar de que esse novo tipo de ser humano se tornará uma patente, modelo de uma multinacional. Assim, estamos falando de uma humanidade robótica, construída em cima do DNA humano, que será um produto de laboratório, onde uma empresa internacional será dona desse produto perfeito, um robô, baseado no código genético humano (ROCHA, 2019).   3.4 Ganância Por exemplo, imagine que alguém desejasse viver para sempre, através da clonagem de si próprio, de forma que quando viesse a morrer, direcionasse esse clone a dar continuidade no seu trabalho (NAMBA, 2009). Existem também, outras teorias muito mais sombrias. Imagine a possiblidade de uma pessoa muito rica ou com muito poder clonar a si mesma. Essa pessoa poderia manter esse clone, uma cobaia, congelado de forma a utilizá-lo simplesmente como uma fonte doadora de órgãos. Ou até mesmo, desenvolver super-homens, super-soldados ou pessoas super-intelectuais (NAMBA, 2009). Podemos facilmente deduzir também que a clonagem poderá ser alvo do mercado ilegal, clínicas clandestinas e de pessoas corruptas (NAMBA, 2009). Muitos poderiam perverter os interesses da comunidade científica almejando dinheiro para fins um tanto quanto macabros e sabemos que quando estamos à falar de ganância, ela não tem freios. Em outubro de 2019, foi encontrado, 39 pessoas mortas em um caminhão frigorífico perto de Londres, eram cidadãos chineses, conforme as autoridades britânicas (PRESSE, 2019). A tragédia faz recordar um incidente parecido ocorrido em junho de 2000, quando 58 pessoas em situação irregular foram encontradas mortas, asfixiados, em um caminhão no porto de Dover (sul da Inglaterra), (PRESSE, 2019). Uma grande investigação feita pela força policial britânica está em andamento para determinar as circunstâncias que levaram a essas mortes. Portanto, resta evidente e presumível até onde o ser humano pode chegar para conseguir alcançar seus interesses próprios (PRESSE, 2019). Parece ficção ou um futuro distópico, mas mesmo assim, sabemos muito bem do lado obscuro que a ganância por dinheiro aflora nas pessoas. Tendo em vista, que as pesquisas científicas nem sempre são pautadas pela ética e moral, como já vivenciado historicamente.   3.5 Corrupção Devemos ter muito cuidado, porque os riscos dessa intervenção humana são enormes, como por exemplo, nas mãos de quem esta técnica poderia cair, como já ocorrido na história. Imagine um novo e modernizado modelo Hitler surgindo? Pensem nos riscos que isso poderia trazer. A corrupção foi um fato que sempre existiu e sempre irá existir. Sabemos que existem pessoas ruins em todo lugar e em todo momento. Não surpreenderia, se, empresas clandestinas fossem abertas e utilizassem clones para o tráfico de órgãos. Ou até mesmo, utilizassem esses clones como cobaias para experimentos científicos. Isso transformaria pessoas em verdadeiros ratos de laboratório.   3.6 Imprevisibilidade Existem sérios riscos imprevisíveis de que esse processo eugênico venha a comprometer algo muito importante na natureza, a variabilidade genética. Bem como, também a possibilidade de surgirem implicações biológicas irreversíveis que a manipulação genética poderia acarretar. Em tese, tem poder tanto para criar, quanto para destruir. À título de exemplo, seria, caso a edição genética resultasse uma criança saudável, mas por outro lado, poderia resultar uma criança cheia de anomalias, lesões, tumores e inclusive com envelhecimento precoce (PEREIRA, 2015). Um exemplo verídico seria a própria ovelha Dolly, que acabou sofrendo um processo de envelhecimento precoce e morrendo poucos anos depois da sua clonagem  (PEREIRA, 2015). Por isso, os pesquisadores ainda têm um longo caminho a percorrer, diante dessa imprevisibilidade que devem buscar contorná-la.   3.7 Dilema jurídico Esta revolução dos genes, implica em verdadeiros impasses para o Direito colocando em pauta discussões acerca de relações de trabalho, previdenciárias, sociais, contratuais; documentos de identificação de pessoas naturais; exercício de direitos personalíssimos, autorais, sucessórios, do consumidor; responsabilidade civil e penal; transferências de técnologia genética; reprodução assistida pós mortem; relações interpessoais entre os indivíduos desse novo tipo de sociedade; direito dos animais (extração de órgãos), dentre outras hipóteses (DINIZ, 2017).   3.8 Omissão jurídica Consoante dizeres de VOGT (2001), tudo o que o homem pode fazer ele o fará, mesmo que a custo de muitas vidas e arrependimento tardio, como foi o caso para os autores da bomba atômica. Existem documentos internacionais, que proíbem intervenções genéticas em seres humanos, como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO de 1997; a Constituição Europeia de 2004; e a Declaração das Nações Unidas, porém, até o presente ano, não existe norma ou lei nacional, regulamentando o processo de clonagem em seres humanos, deixando inércia, com essa lacuna, a brecha perfeita para o surgimento da exploração ilegal por laboratórios clandestinos poe exemplo (UNESCO, 2006). Pois, conforme Eduardo Oliveira leite (1997) prediz em seu livro Bioética ao Biodireito: o homem não pode viver sem regras, pois o vazio jurídico torna tudo possível. Resta evidente a necessidade de reflexões sobre a necessidade e emergência de uma legislação específica. (HIRONAKA, 2003). Apesar das proibições normativas internacionais, em 2008 aconteceu um experimento na Califórnia, da qual o pesquisador conseguiu levar células humanas clonadas até a fase de blastocisto, que somente fora interrompida pela destruição proposital através de um processo natural do próprio experimento, com certa validade. (HIRONAKA, 2003).   A lei de brasileira de biossegurança nº 11.105/2005, proíbe essa prática, interpretando-a como crime, apenando a violação com o cerceamento de liberdade de 2 a 5 anos nos incisos do artigo 6º, nos seguintes termos (LEI Nº 11.105/2005): Art. 6º. Fica proibido: III- engenharia genética em célula germinal, zigoto e embrião humanos; IV- clonagem humana   Sendo, igual estipulação reafirmada pelo art. 4º da Lei nº 13.123/2015 (Lei do Patrimônio genético) que veda utilização de técnicas congêneres. De qualquer forma, não temos muita escolha. Se o homem colocar em sua cabeça que a clonagem é um feito que deverá ser alcançado, ele certamente o fará.   3.9 Dilema ético e moral Este iminente cenário, em tese, poderia acarretar implicações na saúde do sujeito geneticamente modificado em vista da imprevisibilidade que essa técnica pode vir a trazer futuramente. Por outro lado, os sucessos da utilização dessas técnicas poderiam trazer grande melhoramento e muitos benefícios no patrimônio genético humano. Podendo inclusive, afastar o acometimento de graves doenças iminentes, presentes em nosso código genético, trazendo melhorias no genótipo como, físico, aparência, inteligência e até mesmo na memória. A edição do código genético pode ser solução para ultrapassarmos muitas barreiras, limites e desafios no futuro. Não cabe ao Estado editar regras segundo as quais todos os homens de ciência deveriam se conformar, mas também não cabe aos pesquisadores decidirem sozinhos, assim como, a sociedade não pode se desobrigar de uma responsabilidade que é de todos (SAUWEN, 2008). O direito frente a uma perspectiva contra ou pró eugênica, caracteriza a importante discussão que é a proibição das eugenias, surgindo daí também, a problemática do controle de uma ciência sobre a outra (SUBTIL, 2016). Diante dessa proibição, tanto da eugenia positiva quanto da negativa, o direito muito contribuiria numa análise preliminar e introdutória à manutenção das relações igualitárias entre indivíduos que são conscientes da sua autoria genética (SUBTIL, 2016). Assim, teoricamente a clonagem seria uma boa ação de acordo com a linha de raciocínio consequencialista e utilitarista do filósofo e economista britânico John Stuart Mill, autor do livro On Liberty, de 1869, de que uma boa ação seria aquela que trouxesse boas consequências, ou seja, que melhor contribuísse para o bem-estar e felicidade da maioria (SUBTIL,2016). Para Mill uma ação deve ser avaliada por suas consequências, e não pelos seus motivos ou intenções uma vez que estes não se referem a ação em si, mas unicamente ao caráter de seu agente. Também não podemos nos esquecer, que o agente nem sempre trará boas consequências; “Hitler”. As práticas biomédicas, tornadas mais audaciosas, graças a um desenvolvimento tecnológico inusitado, envolvem, a partir de agora, a vida humana de forma integral, apreendendo-a, dominando-a e corrigindo-a, de acordo com os interesses em questão, isto é, procurando melhorar sua qualidade e fazendo suas fronteiras recuarem, como se fôssemos aprendizes de Deus (VOGT, 2001). Assim, põe-se em pauta questões éticas, médicas, científicas e problemas morais de se manipular ou melhorar geneticamente seres humanos ou manter-se em oposição a isso.   3.9.1 Pretexto lógico: Silogismo aristotélico prático da manipulação de material genético 3.9.1.1 Argumentos a favor da melhoria genética: 1) O ARGUMENTO DA INCAPACIDADE   2) O ARGUMENTO DO CONTINUUM DANO-BENEFÍCIO   3.9.1.2 Argumentos contra a melhoria genética: 1) O ARGUMENTO DA SEGURANÇA   2) ARGUMENTO DA DISTRIBUIÇÃO INJUSTA   3) O ARGUMENTO DA CRIANÇA FEITA DE MERCADORIA   Segundo o filósofo francês SARTRE (2014), todo homem é condenado a ser livre. Condenado, porque não criou a si mesmo e livre, pois uma vez lançado no mundo pode fazer aquilo que deseja, sendo responsável pelos seus atos. Seguindo essa linha de raciocínio, se todo clone é um ser humano, logo, todo clone estará condenado a liberdade. Falar isso, significa dizer que são indivíduos cópias apenas físicas de alguém. Porém, são pessoas com vontade própria, interesses, experiências, emoções e características específicas. Pessoas destinadas à vida, da forma como desejarem viver.   3.10 Desigualdade Em tese, racionalmente podemos facilmente prever que tal privilégio genético fomentará a desigualdade social e econômica, por se tratar de técnicas avançadas, o custo certamente será elevado. Colocando em vantagem pessoas economicamente favorecidas para acessar a edição dos genes (IBGE, 2019). O que acabaria causando uma espécie de assimetria racial, social e de gênero entre as pessoas que não tem nenhuma intervenção de terceiros em seus códigos genéticos, e nem possibilidades financeiras para isso e, aquelas pessoas que justamente sofreram essa hetero determinação, irreversível de quem serão a partir de uma terceira pessoa, pois não seria mais possível modificar a própria identidade da pessoa com os seus próprios gostos (IBGE, 2019). Por conseguinte, distanciando culturalmente as pessoas melhoradas das comuns que não puderem passar por esse mesmo procedimento. Acarretando, assim, o surgimento de grupos cada vez mais elitizados em detrimento de pessoas carentes de recursos e meios para o acesso (IBGE, 2019). Com isso, em nossa sociedade onde, por exemplo, a igualdade é um princípio constituinte das relações, resta incerto como é que isso afetaria as pessoas que não se consideram como autoras da própria vida. Bem como, a regulação dessa relação entre pessoas tão assimétricas entre si. Como o direito lidará com pessoas que se sentem diferentes e ao mesmo tempo geneticamente diferenciadas em nossa sociedade extremamente competitiva? Poderiam elas conviver de forma igual e justa com pessoas comuns? Sabemos que a desigualdade é um dos principais fatores de discriminação. Seriam somente as pessoas geneticamente modificadas as vítimas disso? Por certo haverá práticas de bulling por ambas partes. O problema é que até agora, fazer isso ainda era muito caro e demorado, mas isso mudará muito rapidamente graças à descoberta revolucionária dos cientistas da técnica chamada Krispr/cas 9. Conforme inteligência do dispositivo constitucional constata-se violação de direito fundamental para tal hipótese (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 5º da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança (…)   3.11 Liberdade Veja bem, se um indivíduo tem uma hetero determinação externa, irreversível, através de uma alteração genética não escolhida por ele e, sim escolhida por exemplo por seus pais. Como esse indivíduo se sentiria em uma sociedade onde outros indivíduos não tem essa hetero determinação externa? Isso violaria sua própria identidade natural. Como se dará a auto compreensão da natureza e qual será o papel do direito diante deste panorama iminente e gravíssimo. Imprescindível que não se confunda os meios os quais toda essa proposta de ontologia vem sendo implantada, com os fins (PIETRO 2002). Como as pessoas que não desejavam ter determinadas suas características físicas ou genéticas se relacionarão com as outras, de características naturais e sem nenhuma determinação externa? Poderia ser usada tais ou outras técnicas para outras diversas doenças genéticas, congênitas que a humanidade carrega? Mas, qual o limite disso? São esses dilemas que enfrentará o legislador e operadores do direito. E é justamente nesse momento que se dará a interseção entre o direito, a genética e a biologia, fazendo com que essa discussão interdisciplinar se torne tão importante para aqueles que estudam o direito e demais matérias atinentes, bem como, também para as pessoas em geral no seu dia a dia prático (NAMBA, 2009). Por isso, esse debate configurado como extremamente complexo, atual e iminente, que não é para o futuro e, sim, deve ser realizado a partir de agora. Concluindo, nos deparamos ainda com a ideia trazida pela máxima utilizada por Thomas Hobbes de que, o homem é o lobo do próprio homem (CHAUÍ, 2015). E assim, nos vemos diante das contradições à objetivos fundamentais preconizados em nossa Carta Magna (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 3º da CF Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.   Esforços buscando aliarmos tecnologias em proveito da saúde é a melhor maneira de se utilizar da manipulação genética, como por exemplo a impressora de órgãos e tecidos artificiais em 3D. Compreender que existe uma pluralidade moral na humanidade para assim, harmonizar e abranger todas as crenças e valores existentes, visando respostas éticas e morais adequadas o suficiente para uma sociedade humanizada e para o desenvolvimento científico e tecnológico no seu amplo sentido. Visar a ampla positivação jurídica dos princípios básicos da bioética e do biodireito, de forma a regulamentar e impor limites. Equilibrando assim, entre normas que não atenuem benfeitorias trazidas pelo avanço tecnológico, e a preservação dos direitos fundamentais para proteção de todas as formas de vida e meio ambientes em geral. Para tanto, necessita-se de regulamentação legislativa específica e abrangente da matéria por autoridades competentes, para delimitar e definir na plenitude das possibilidades e consequências, o que é legal e eticamente aceito e, o que não é. E então, tomar medidas efetivas que fiscalizem e combatam as possíveis violações. Investir em infraestrutura e educação para permitir pesquisas legalizadas e aprofundadas sobre a matéria, e acessíveis, à população e comunidade científica local para exploração dessa revolução biotecnológica. Então, submeter todas as pesquisas com seres humanos à apreciação e fiscalização dos sistemas CEP/CONEP, a fim de garantir a devida proteção e respeito à dignidade e autonomia da vontade do ser humano, comprometendo-se à máxima prevalência de benefícios e mínima de riscos e danos previsíveis. Por fim, dar a devida relevância sócio humanitária às pesquisas dessa área realizando-as somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido por outro e fundamentá-las na lógica científica, sempre respeitando os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como dos hábitos e costumes locais.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Observando-se todos os avanços científicos dos últimos anos, certo é que coisas muito maiores virão nos próximos. Necessário se faz nos prepararmos para o que está por vir, pois a qualquer momento essa prática pode vir a sair do controle. Se isso acontecer e não houver possibilidade alguma de interromper este processo, caberá a nós inserir esses novos indivíduos dentro da sociedade. Manipular o código genético pode ser a chave para inúmeras melhorias, como aumentar a produção de alimentos, prevenir doenças, viver mais e com melhor qualidade. Porém, com o avanço da biomedicina, surge a possibilidade de se criar homens perfeitos que servirão como cobaias para extração de órgãos, livres de qualquer tipo de doença e com características fenotípicas mais próximas de um modelo ideal que se imagina que é. Apesar de aparentemente parecer ficção científica ou coisa de filme, não é o caso. Estamos falando de uma ideia já antiga. Tais hipóteses, colocam em pauta questões éticas de se manipular e explorar a genética humana e a possibilidade da seleção racial de quem deva ou não existir. A filosofia como um dos pilares da bioética, muito auxilia na resolução de dilemas éticos e morais, tal como o segundo imperativo categórico de KANT (2001), afirmando que o ser humano nunca pode ser tratado simplesmente como meio, mas, ao mesmo tempo e simultaneamente como fim. Esta máxima ajuda a direcionar a conduta do homem Por fim, ou recuperamos o conceito de ser do ser humano, ou nada poderá ser feito. Afinal apenas assim, será possível encaminhar o desenvolvimento e o uso das inovações tecnológicas, e garantir o alcance de um resultado positivo tanto para o planeta quanto para nós.
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Diretivas antecipadas de vontade, efetividade real?
Este artigo tem por objetivo trazer à discussão os efeitos jurídicos da eventual inobservância do conteúdo das diretivas antecipadas de vontade por uma determinada equipe médica. Em razão da inexistência de normas específicas a esse respeito, a análise do objeto de estudo será realizada por meio do estudo dos aspectos filosóficos que norteiam as diretivas antecipadas de vontade e da jurisprudência internacional sobre o tema.
Biodireito
INTRODUÇÃO O término da Segunda Guerra Mundial é um marco importantíssimo para que se compreenda, em boa medida, os fundamentos do pensamento contemporâneo. Como consequência das desumanidades cometidas nesse período, foi trazida à evidência a necessidade de normatizar a dignidade da pessoa humana, reafirmando a importância da sua proteção incondicional, e também a necessidade de que cada indivíduo tenha a oportunidade de realizar suas próprias escolhas, que deverão ser respeitadas pelos demais. A relação estabelecida entre médicos e pacientes sofreu profundas transformações em razão dos efeitos sociológicos da Segunda Guerra Mundial. Pacientes passaram a ter voz e, o mais importante, a serem ouvidos pelos seus médicos na escolha dos métodos empregados no cuidado com a sua saúde. Contudo, ao deliberarmos sobre os cuidados com a nossa saúde, até que ponto podemos crer que a liberdade de escolha e a capacidade de autodeterminação que nos é inerente pode ser sobreposta à nossa própria vida? Devem ser impostos limites às nossas interferências nos prognósticos médicos? Nos anos 60 surgiu, nos Estados Unidos da América, a figura das diretivas antecipadas de vontade – popularmente conhecidas como testamento vital (living will) – como forma de garantir o exercício da liberdade individual de cada paciente, ainda que este se encontre incapacitado de exprimir sua vontade. Além de protegerem a vontade dos pacientes, as diretivas antecipadas de vontade também constituem um instrumento de exclusão de responsabilidade civil e penal dos profissionais da saúde que cumprirem a vontade de seus pacientes. Diante desse caráter protetivo dúplice das diretivas antecipadas de vontade, nos ocuparemos de analisar a sua efetiva oponibilidade aos profissionais de saúde e as consequências jurídicas da sua inobservância.   O estudo da abrangência e do significado do princípio da dignidade da pessoa humana é indissociável de qualquer discussão jurídica ou filosófica que, de alguma maneira, tangencie as noções de vida, bem-estar e, inclusive, a chamada “morte digna”. Ainda que não se trate de um conceito estático, para que seja possível compreender o atual significado da dignidade – amplamente difundida pelos operadores do direito sem que, muitas vezes, se tenha em mente qual a carga axiológica existente por trás desse princípio – faz-se necessário recobrar, ainda que brevemente, a sua concepção histórico-filosófica. A noção de “dignidade”, apesar de não ter sido objeto de proteção jurídica durante boa parte da história do direito, filosoficamente se faz presente na sociedade ocidental desde o estoicismo da Antiguidade Clássica. À época, a chamada dignitas estava dissociada da autonomia subjetiva de cada indivíduo, verificando-se por meio da posição que este ocupava publicamente dentro da sociedade em que estava inserido, evidenciando-se pelos títulos e honrarias que ostentasse perante os demais entes integrantes desse convívio social. Assim, tem-se que, dentro das sociedades greco-romanas:   “o homem não se afirmava propriamente como personalidade individual, mas enquanto integrante da onipotente comunidade cívica plasmada na polis helênica e na urbs latina; que absorvia, praticamente por inteiro, a sua vida física e espiritual, o seu corpo e a sua alma, refletindo, portanto, as aptidões e virtudes pessoais de sua existência”.[1]   A percepção filosófica de que a dignidade abarca concomitantemente as posições moral e social dos indivíduos surge a partir do pensamento de Marco Túlio Cícero, na obra Dei Officcis, na qual se defende que os homens, por serem dotados de igual dignidade cósmica, possuem o dever de respeitar e considerar aos seus pares. Essa noção se fez presente durante séculos da Idade Média. Além da estrutura filosófico-social greco-romana, a tradição judaico-cristã também pode ser considerada como um pilar preponderante na construção da atual carga axiológica que permeia o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob esse prisma, não se pode deixar de analisar os ensinamentos de São Tomás de Aquino, segundo o qual a dignidade humana se funda, de um lado, no fato de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus e, portanto, não poderiam ser desumanizados ou coisificados. Por outro lado, o pensamento tomista é responsável por trazer à evidência que a dignidade humana também deriva da capacidade de autodeterminação de cada indivíduo, pelo uso da razão no cumprimento das leis naturais que decorrem da autoridade divina. Com o desenvolvimento do pensamento renascentista, o centro das concepções filosóficas desloca-se de Deus para o homem, sem que isso implicasse, contudo, em uma completa ruptura com o pensamento cristão. Nesse contexto, Giovanni Pico Della Mirandola, na obra Oratio de Hominis Dignitate, destaca que a capacidade de autodeterminação de cada indivíduo – já evidenciada pelo pensamento tomista – permite que o homem seja dono do seu próprio destino e utilize-se do seu livre-arbítrio para recriar sua realidade e atingir aos seus objetivos.[2] Apenas a partir do século XVIII, com o desenvolvimento do pensamento iluminista, é que a dignidade passou a ser vista como uma característica inerente ao homem para proteção da integridade e inviolabilidade da sua perspectiva existencial de maneira ampla. Assim, emerge uma concepção laicizada da dignidade humana onde o seu caráter transcendental dá lugar à valorização do homem em si mesmo. A dessacralização da noção de dignidade consolidou-se a partir do pensamento de Immanuel Kant.[3] De acordo com esse filósofo, a racionalidade inerente ao ser humano lhe conferiria autonomia e liberdade, de modo que lhe seria lícito traçar seu próprio destino, independentemente de causas externas que o determinem. O homem passa a ser considerado como um fim em si mesmo, distanciando-se de toda concepção utilitarista que o caracterize como um mero instrumento para que se atinja um fim perseguido por outrem.[4] Contudo, é importante notar que, dentro do pensamento kantiano, a autonomia humana não pode ser colocada em prática à revelia dos direitos de outrem. É necessário que cada indivíduo observe as leis e os preceitos éticos que permeiam a sociedade em que se inserem. Assim, pode-se afirmar que, para Immanuel Kant, a dignidade humana consiste na capacidade que cada indivíduo possui de autodeterminar-se eticamente. Surge, então, a noção ocidental contemporânea de dignidade humana, por meio da qual esta pode ser considerada como “a fonte ética dos direitos, das liberdades e das garantias pessoais, sociais, culturais e econômicas”,[5] na medida em que é o vetor que possibilita que sejam feitas as ponderações necessárias para que se atinja um equilíbrio entre os diferentes interesses que se chocam diuturnamente em cada uma das relações sociais estabelecidas entre diferentes indivíduos. Apesar de, como se viu, ter sido objeto de estudos filosóficos desde os primórdios da sociedade ocidental, a dignidade da pessoa humana passou a ser objeto de proteção jurídica apenas na metade do Século XX, por força das atrocidades cometidas pelos regimes totalitários que se instalaram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Em razão das inadmissíveis barbaridades cometidas nesse período, a comunidade mundial viu-se obrigada a criar, de forma rápida e eficiente, mecanismos que reafirmassem que os homens são sujeitos de direitos que transcendem o arbítrio dos Estados em que estão de inseridos, e, consequentemente, é dever de cada uma desses Estados zelar pela dignidade e pelos demais direitos fundamentais dos seus cidadãos. No âmbito internacional, criou-se, em 1945, a Organização das Nações Unidas, organismo cujo objetivo é preservar a paz mundial e “reafirmar a fé nos direitos fundamentais no homem, na dignidade e no valor humano”,[6] que, alguns anos mais tarde, levou à elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar de não possuir caráter cogente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos serviu como base dos ordenamentos jurídicos de diversos países – inclusive do Brasil[7] – e motivou a celebração de diversos tratados internacionais, todos com o objetivo de concretizar e ampliar os direitos humanos salvaguardados no cenário internacional. As relações estabelecidas entre indivíduos e Estado não foram as únicas que sofreram profundas alterações após o término da Segunda Guerra Mundial. Diversas relações interpessoais modificaram-se em razão da conscientização dos seres humanos da importância de levar ao debate as suas necessidades enquanto indivíduos nos diversos matizes dessas relações. Em especial, alteraram-se expressivamente as relações estabelecidas entre os médicos e os seus pacientes, como se verá a seguir.   A medicina é, sem sombra de dúvidas, um dos ofícios mais antigos da história da humanidade. Muito provavelmente, o acúmulo milenar de saber que permitiu a formação do que hoje conhecemos como “ciência médica” se deve ao fato que a preocupação do homem em cuidar da sua sobrevivência se faz presente na civilização há, ao menos, 10.000 anos.[8] Primordialmente, o médico não era visto como um especialista em determinada matéria, mas sim como um mago ou sacerdote. Isso se dava essencialmente porque a habilidade de cuidar da saúde de terceiros, levando à cura de moléstias, era vista como um dom divino ou sobrenatural. Portanto, os diagnósticos médicos eram elevados a um patamar em que eram considerados inquestionáveis pelos seus pacientes, em razão da sacralidade do seu ofício. Apenas na Antiguidade Clássica, com o pensamento de Hipócrates, é que surgiu a ideia que os conhecimentos médicos poderiam ser dotados de contornos científicos, dissociando-se, ainda que timidamente, do caráter naturalista da medicina. A visão hipocrática da medicina foi abandonada pela civilização romana e durante a Idade Média, sendo retomada apenas no período renascentista, em razão do distanciamento filosófico que se deu entre o Deus e o homem. Ainda assim, em que pese a retomada do viés científico da medicina, o pensamento renascentista não se prestou a humanizar a figura do paciente, fazendo-o ser percebido como um sujeito autônomo de direitos além de ser objeto dos cuidados do seu médico. A relação médico-paciente manteve-se verticalizada. Muitas vezes as decisões médicas não eram questionadas porque tinha-se a genuína confiança de que o profissional da saúde sempre defenderia os melhores interesses de seus pacientes, aplicando as melhores técnicas e tratamentos possíveis para extirpar determinada moléstia e restabelecer a saúde destes. Como já mencionamos anteriormente neste artigo, esse cenário de total subjugação do paciente ao entendimento do seu médico perdurou até o término Segunda Guerra Mundial quando, em razão das atrocidades acometidas contra o ser humano em pretensos experimentos científicos, tomou-se a consciência da importância de impor limites à atuação médica por meio do reconhecimento da capacidade de autodeterminação de cada paciente. Nas palavras de Cassel (1991, X):   “a tarefa da medicina no século XXI será a descoberta da pessoa – encontrar as origens da doença e do sofrimento, com este conhecimento desenvolver métodos para o alívio da dor, e ao mesmo tempo, revelar o poder da própria pessoa, assim como nos séculos XIX e XX foi revelado o poder do corpo”.   Abandonam-se, então, as relações estabelecidas de modo paternalista entre médicos e pacientes, que passam a decidir de modo conjunto quais técnicas e tratamentos serão utilizados em cada caso concreto. Para que esse sistema de decisões conjuntas pudesse ser efetivamente implementado na rotina médica, o paciente deixou de ser considerado apenas sob o ponto de vista biológico e passou a ser visto em sua integridade física, psíquica e social. O médico, por sua vez, passa a ser um profissional que, além de ter os deveres de atenção, cuidado e zelo em relação ao paciente, passa a ter também o dever de informá-lo e esclarecê-lo antes do início de qualquer tratamento. É a partir deste dever de informação – atualmente chamado de “consentimento informado” – que cada paciente exerce a sua capacidade de autodeterminação. O consentimento informado pode ser definido como a “decisão voluntária, realizada por pessoa autônoma e capaz, tomada após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas consequências e dos seus riscos”.[9] Como forma de garantir a observância desse dever de esclarecimento pelos profissionais da saúde criaram-se diversos mecanismos normativos, inclusive de abrangência internacional. A primeira norma a tratar do tema foi o Código de Nuremberg, documento elaborado em 1947 por juízes norte-americanos que, posteriormente, julgariam os crimes cometidos por médicos nazistas em campos de concentração. Em linhas gerais, o Código de Nuremberg destinava-se à imposição de limites éticos e morais às práticas científicas com seres humanos e já em seu primeiro tópico traduz a imprescindibilidade de se observar e respeitar a vontade do paciente em cada caso concreto, segundo os limites da sua dignidade e o exercício da sua autonomia. In verbis:   “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão lúcida. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais o experimento será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente” (grifos nossos).   Posteriormente foram editadas diversas normas internacionais ressaltando a imprescindibilidade da observância, pelos médicos, do consentimento livre e esclarecido dos seus pacientes, como é o caso da Declaração de Helsinki, datada de 1946 e da Declaração de Lisboa sobre a Ética da Urgência Médica, de 1981, ambas aprovadas pela Associação Médica Mundial. O ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, imprime a obrigatoriedade do consentimento informado no artigo 15, do Código Civil que determina que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Além disso, há também o Código de Ética Médica que protege a capacidade de autodeterminação do paciente em seus artigos 22 e 24. A Resolução 1931/2009, do Conselho Federal de Medicina, não deixa dúvidas que é vedado aos médicos “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em casa de risco iminente de morte” (art. 22), bem como “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” (art. 24). Como já mencionado neste artigo, assegurar ao paciente a observância da sua autonomia nos tratamentos médicos significa dizer que serão preservados, pelo médico, os seus limites éticos e a sua dignidade. Evidentemente, tanto os limites éticos, quanto a noção de dignidade de cada indivíduo, são conceitos extremamente subjetivos que podem modificar-se completamente a depender das convicções sociais, religiosas e filosóficas de cada um. Nesse cenário, para que seja assegurado o exercício da autonomia do paciente em tempo integral, surge a necessidade de criarem-se mecanismos que permitam que os valores de cada paciente sejam observados ainda que se esteja diante de uma situação na qual não possa exprimir sua vontade. Nascem, então, as “diretivas antecipadas de vontade” – popularmente conhecidas como “testamento vital”, que estudaremos no tópico a seguir.   As diretivas antecipadas de vontade são o produto (i) da acertada valorização da dignidade humana e da autonomia inerente a cada indivíduo no contexto pós Segunda Guerra Mundial, e (ii) do individualismo que particulariza a sociedade pós-moderna, responsável por fazer com que os seres humanos objetivem expandir cada vez mais o âmbito da liberdade que possuem para fazerem suas próprias escolhas. Atualmente, pretende-se que essa liberdade de escolha permeie não só o modo como cada indivíduo conduz a sua própria existência, como também seja estendida ao modo pelo qual essa existência findará caso alguém entenda que sua vida tornou-se “indigna” e, portanto, não vale mais a pena ser vivida. Para que possamos compreender as possíveis escolhas que um indivíduo pode fazer quanto ao que considera ser um modo digno de morrer, é preciso fazer uma breve distinção entre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia. A eutanásia (do grego, “morte boa”), consiste em um ato interventivo por meio do qual é causada a morte, sem dor, de um paciente que esteja em estado terminal, ou seja portador de doença incurável que lhe cause graves dores. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a prática da eutanásia, tipificando-a como homicídio privilegiado, por meio do art. 121, § 1º, do Código Penal. A ortotanásia (do grego, “morte certa”), por sua vez, consiste no “comportamento de abstenção de qualquer intervenção médica no prolongamento da vida de uma pessoa, propiciando ao paciente uma morte conforme o curso causal natural da doença ou incapacitação que o aflige”.[10] Por fim, a distanásia (do grego, “morte ruim”), define o tratamento interventivo que visa o prolongamento artificial da vida do paciente, ainda que isso implique no prolongamento do seu sofrimento em razão das circunstâncias vitais que, fatalmente, o levariam a óbito. Tanto a ortotanásia quanto a distanásia são admitidas pelo ordenamento brasileiro, tendo em vista que não há nenhum comando legal em sentido contrário e, como visto anteriormente, é assegurada ao paciente a liberdade de escolha dos procedimentos que serão realizados pelo seu médico no tratamento de determinada moléstia. Entretanto, muitas vezes não é possível que um indivíduo expresse a sua vontade com relação a determinado procedimento médico ou tratamento, especialmente quando é acometido por uma doença terminal ou está inconsciente. Nesse contexto, diante da necessidade de assegurar a autonomia do paciente mesmo nos casos em que este se encontre inconsciente, surgiu nos Estados Unidos da América, em 1967, o testamento vital (living will). O testamento vital objetiva “instrumentalizar o paciente para expressar seus desejos em situações futuras em que isso não seja possível, preservando a sua autonomia e a sua dignidade mesmo em situações em que se encontre incapacitado para agir”.[11] Renata de Lima Rodrigues conceitua o testamento vital da seguinte maneira:   “(…) são determinações prévias dadas por certas pessoas – estando elas ou não na condição de pacientes no momento de sua elaboração -, que devem ser cumpridas, ante uma situação na qual elas se tornem incompetentes para decidir o cuidado de si mesmas, indicando suas preferências de tratamento ou até mesmo autorizando uma terceira pessoa a tomar decisões por elas”.[12]   Portanto, o paciente pode valer-se do testamento vital para indicar quais tipos de tratamento aceita ou recusa, em determinados casos. É possível também que o paciente nomeie um procurador para os cuidados da sua saúde (durable power of attorney for health care), hipótese em que um terceiro poderá tomar decisões concernentes a sua saúde se estiver incapacitado de decidir por si. Muitos países já normatizaram as diretivas antecipadas de vontade, de modo a (i) reafirmar o dever de os médicos observarem e cumprirem as determinações prévias de seus pacientes, caso estes não possam, por qualquer razão, manifestar sua vontade, e (ii) estabelecer parâmetros que deverão ser observados pelos pacientes na edição dessas diretivas. Como era de se esperar, os Estados Unidos da América também foi o primeiro país a normatizar as diretivas antecipadas de vontade – tanto na forma do living will, quanto na forma do durable power of attorney for health care. Na legislação norte-americana, as diretivas antecipadas de vontade, de um lado, protegem a autonomia dos pacientes que as adotam e, por outro lado, concedem imunidade civil e penal aos profissionais da saúde que respeitam o testamento vital.[13] O exemplo norte-americano, no sentido de regular as diretivas antecipadas de vontade, foi seguido por diversos países anglo-saxões (Austrália, Nova Zelândia e Canadá), nórdicos (Dinamarca, Alemanha, Suíça e Países Baixos) e latinos, como a Espanha. Outro marco legislativo no que tange ao testamento vital é a Lei 25/2012 de Portugal, que estabelece que as diretivas antecipadas terão validade de cinco anos, podendo ser renovadas e veda as (i) práticas que contrariem o ordenamento jurídico português, e (ii) intervenções que levem deliberadamente à morte não natural e evitável (artigos 5º e 7º). Além disso, a lei portuguesa estabelece que as diretivas deverão ser registradas perante o Registro Nacional do Testamento Vital, de forma a assegurar que os profissionais da saúde possam ter acesso às diretivas antecipadas de terminado paciente em quaisquer circunstâncias. Em que pese o avanço internacional na discussão e regulamentação das diretivas antecipadas de vontade, no Brasil as discussões a esse respeito ainda se encontram em fase embrionária. Apesar de ter atraído a atenção de diversos doutrinadores, o testamento vital não é objeto de nenhuma regulamentação legal, o que dificulta a abordagem do tema no país. De fato, há dados que comprovam que, nos Estados Unidos da América, a normatização do testamento vital por meio do Patient Self-determination Act (1991) foi preponderante para que o tema fosse difundido entre a população norte-americana. Isso porque, ao se estabelecerem parâmetros legais ao testamento vital criou-se um cenário que permitiu que a população norte-americana se sentisse segura ao debater sobre o tema e efetivamente adotar as diretivas antecipadas de vontade ao decidirem sobre questões relacionadas a sua saúde. De todo modo, é possível dizer que, no Brasil, as diretivas antecipadas de vontade são admitidas, de um lado, em razão dos princípios legais que regem a relação médico-paciente, sendo eles a autonomia e a dignidade. E, por outro lado, também são administrativamente admitidas por meio da Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, que determina expressamente que o médico deverá levar o seu conteúdo em consideração nos casos em que o paciente que não puder exprimir sua vontade, salvo se as diretivas estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica (art. 2º, §§ 1º e 2º). Ao condicionar o cumprimento das diretivas antecipadas de vontade a sua consonância com o Código de Ética Médica, a Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, evidencia a problemática que nos propomos a tratar neste artigo: as diretivas antecipadas de vontade são de fato oponíveis aos médicos?   Em uma primeira análise, parece-nos que as diretivas antecipadas de vontade são um mecanismo dúplice de proteção jurídica: de um lado, estão salvaguardados os interesses do paciente que, por qualquer razão, esteja incapacitado de expressar sua vontade. Por outro lado, proporciona-se segurança jurídica ao médico que, por observar o conteúdo das diretivas antecipadas, cumpre manifestações de vontade que potencialmente conflitam com outros valores ou interesses, impedindo sua posterior responsabilização por abster-se de utilizar determinada técnica ou tratamento, em uma conduta que poderia ser reputada como negligente. Assim, para que se preserve a razão de ser desse instituto, é imprescindível que lhe sejam conferidos efeitos vinculantes. Afinal, desse modo, se evitaria o surgimento de verdadeiras batalhas jurídicas caso o médico não queria cumprir as diretivas antecipadas de vontade do seu paciente ou, ainda, um familiar se oponha à efetivação da vontade do doente. A esse respeito, esclareça-se que o efeito vinculante do testamento vital não impede que o médico deixe de cumpri-las em razão de eventual objeção de consciência fundada em razões éticas, morais ou religiosas. Contudo, nessa hipótese, o médico deverá justificar a sua recusa e encaminhar o paciente a outro profissional que não tenha objeções ao cumprimento da sua vontade. Ao invocar a objeção de consciência o médico não pode, em hipótese alguma, agir à revelia do seu paciente ou deixá-lo desprovido de cuidados. Uma vez posta a premissa dos efeitos vinculantes das diretivas antecipadas de vontade, nos resta analisar os pressupostos da responsabilidade civil do médico e o tratamento que se tem dado ao tema pelos tribunais em casos que, por circunstâncias diversas, a vontade do paciente não foi observada. Embora a questão da responsabilidade civil do médico ser de suma importância na sociedade contemporânea, especialmente porque os profissionais da saúde lidam rotineiramente com um dos bens mais valiosos do ser humano: a vida, o tema não é nenhuma inovação dos ordenamentos jurídicos modernos. O Código de Hamurabi já previa a aplicação da pena de talião ao médico que, de alguma maneira, prejudicasse o seu paciente. De igual modo, o Direito Romano também punia o profissional da saúde que agisse de modo negligente ou imperito.[14] Os moldes adotados atualmente para que o médico seja civilmente responsabilizado por suas condutas delinearam-se na França, em 1832 quando foram fixadas, de um lado, normas obrigacionais do médico perante os seus pacientes e, de outro lado, a obrigação de o Judiciário fiscalizar e punir os erros profissionais. Dentro do ordenamento jurídico brasileiro atual, a responsabilidade civil dos profissionais da saúde é regulada pelo tanto pelas regras gerais de responsabilidade contidas no Código Civil, quanto pelas disposições Código de Defesa de Consumidor. No âmbito do Código Civil, a responsabilidade civil é regrada pelos seus artigos 186, 187 e 927, caput. Além disso, há também o artigo 951, que dispõe sobre a indenização devida pelo médico nos casos em que o paciente vem a óbito, em consequência de conduta imprudente, negligente ou imperita do profissional da saúde. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, por meio de seu artigo 14, § 4º, não deixa dúvidas que a responsabilidade civil dos profissionais liberais, dentre os quais se inclui o médico, depende da existência de culpa. Tem-se, portanto, que a responsabilidade do profissional da saúde é subjetiva, sobretudo em razão da natureza da obrigação assumida pelo médico perante o seu paciente que, em via de regra, é de meio de não de resultado. Isso porque, o médico tem o dever de aplicar os meios adequados para obter o melhor resultado possível dentro das circunstâncias do caso concreto a ele apresentado, sem que isso implique, contudo, na obrigação de que, ao final do tratamento ministrado, se obtenha a cura do paciente. Esse racional é, inclusive, reforçado pelo art. 1º, do Código de Ética Médica, que dispõe ser “vedado ao médico: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. O parágrafo único desde dispositivo estabelece ainda que: “a responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida”. A subjetividade da responsabilidade civil do médico excepciona-se apenas quando tratamos dos profissionais contratados para a realização de cirurgias plásticas, tendo em vista que, nesses casos, o paciente espera que atingir um resultado específico por meio da prestação de serviços médicos. Nessas hipóteses, portanto, tem-se que a responsabilidade civil do profissional da saúde é objetiva. Em qualquer dos casos, a responsabilização do médico depende, necessariamente, da prática de uma conduta ativa, decorrente de uma obrigação de fazer assumida perante o paciente. Sendo assim, quais os pressupostos legais devem ser utilizados para responsabilizar o profissional de saúde quando este infringe uma obrigação de não fazer assumida perante o paciente, em decorrência da existência de diretivas antecipadas de vontade por meio das quais se recusa a administração de determinados tratamentos? A legislação brasileira possui dispositivos que são claros ao determinar que o paciente não possa ser indenizado pelos prejuízos que lhe forem causados quando este se recusar a se submeter a exame médico necessário (Código Civil, artigo 231). De modo que é patente a proteção jurídica conferida ao profissional da saúde nesses casos. Entretanto, inexistem leis que versem especificamente sobre as consequências jurídicas que eventualmente serão enfrentadas pelos médicos caso estes, em ato de mera arbitrariedade, ajam à revelia de seus pacientes, desconsiderando por completo a sua manifestação prévia de vontade, consubstanciada no testamento vital. Aliás, essas consequências jurídicas poderiam ser, inclusive, aplicadas a eventuais familiares que impeçam que a equipe médica cumpra com a vontade de um paciente que se encontre inconsciente ou em estado terminal, apesar dessa hipótese não ser objeto da análise deste estudo. Em casos tais, na ausência de regras específicas, não nos resta alternativa que não analisar a solução dada a essa hipótese em casos concretos. Considerando que essa situação ainda não foi enfrentada diretamente pelos tribunais brasileiros, nos socorreremos de julgados proferidos por cortes estrangeiras para análise do tema, mais especificamente, Canadá e Estados Unidos da América. O primeiro caso que comentaremos é Anderson v. St. Francis-St. George Hospital, processado perante os tribunais do Estado de Ohio, EUA. Nesse processo, discutiam-se as diretivas antecipadas de um indivíduo que declarou não desejar ser submetido ao procedimento de desfibrilação, caso viesse a enfrentar quaisquer problemas cardíacos no futuro. Em que pese a sua diretiva antecipada de vontade, ao ser vítima de um ataque cardíaco, o paciente foi submetido a esse procedimento e, alguns dias depois, foi vítima de um derrame cerebral que o deixou em estado vegetativo por um longo período, impondo-lhe uma situação de grande sofrimento. Nesse caso, é inegável que o paciente sofreu inúmeros danos físicos, psíquicos e morais, em razão da desconsideração das suas diretivas antecipadas de vontade pela equipe médica que o socorreu. Ainda assim, o Tribunal de Ohio entendeu que a equipe médica não poderia ser responsabilizada pelos danos sofridos pelo paciente meramente pela desconsideração das suas diretivas antecipadas de vontade, tendo em vista que a condição de saúde que o acometeu posteriormente à desfibrilação não poderia ser admitida como consequência direta do procedimento realizado à sua revelia. Igualmente, no caso Margot Bentley, processado perante as cortes de British Columbia, Canadá, as diretivas antecipadas da paciente foram desconsideradas pela equipe médica que lhe fornecia cuidados, sem que essa conduta dos médicos levasse à aplicação de qualquer espécie de sanção. Nesse caso, apesar de a paciente ter indicado expressamente que não desejava ser submetida a tratamentos que incluíssem a administração de alimentação artificial caso viesse a ser diagnosticada com a doença de Alzheimer, as suas diretivas antecipadas foram desconsideradas pela equipe médica sob a alegação que o hospital não poderia deixar de alimentar alguém que está sob seus cuidados. Como já mencionado, os tribunais canadenses entenderam que a equipe médica não poderia ser responsabilizada pela desconsideração das diretivas antecipadas da paciente no caso concreto. Mais uma vez, a atuação médica prevaleceu sobre a capacidade de autodeterminação inerente a cada indivíduo, tão aclamada e veementemente defendida na atualidade. Possivelmente, os protagonistas de ambos os casos mencionados nesse estudo foram submetidos a condições de sobrevivência que, de acordo com os seus julgamentos pessoais, seriam consideradas indignas. Contudo, é visível que, em ambos os casos, a decisão das cortes canadense e norte-americana pautou-se na ponderação de dois direitos fundamentais dos pacientes: vida e liberdade. Em que pese a noção contemporânea de liberdade estar umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana, como vimos no decorrer deste artigo, não nos parece ser de todo injustificável a proteção do valor “vida” pelos tribunais nos casos que comentamos. Afinal, para que seja possível o surgimento de qualquer discussão jurídico-filosófica sobre a capacidade de autodeterminação dos seres humanos é imprescindível que haja vida. Ademais, admitir a relativização do valor da vida humana, ainda que em prol das liberdades individuais de cada um, poderia, em alguma medida, levar à banalização do seu valor, de modo que qualquer choque principiológico que envolva a vida humana deve ser analisado com cautela.   CONCLUSÃO Em razão de tudo quanto foi exposto, podemos concluir que as diretivas antecipadas de vontade são um instrumento de suma importância na condução das relações estabelecidas entre médicos e pacientes que, por alguma razão, se deparem com circunstâncias que os impeçam de manifestar sua vontade em relação à adoção de determinados tratamentos. Entretanto, é necessário que sejam editadas normas que, além de conferir-lhe efeitos vinculantes, delineiem de modo claro os limites que serão impostos às declarações de vontade do paciente, de modo a evitar a edição de testamentos vitais que, por alguma razão, não poderão ser devidamente cumpridos pela equipe médica responsável. Somente a partir da criação desses mecanismos legais é que se assegurará que as diretivas antecipadas de vontade efetivamente terão os efeitos que são inerentes a esse instituto: (i) a salvaguarda dos interesses do paciente, e (ii) a garantia de que os médicos que respeitarem essas declarações de vontade não serão indevidamente responsabilizados por absterem-se de utilizar determinada técnica ou tratamento.
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Mistanásia: A Morte Precoce, Miserável e Evitável Como Consequência da Violação do Direito à Saúde no Brasil
A Mistanásia, é o oposto da Eutanásia, sendo caracterizada pela bioética e biodireito brasileiros como modalidade de termino de vida, a qual, se concretiza quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação de seu direito a saúde. Na maioria dos casos, a Mistanásia atinge indivíduos excluídos do seio social que dependem das políticas públicas de saúde na garantia de sua dignidade, e mesmo assim, são expostos a situações de risco, em razão da burocracia exagerada, má gestão hospitalar, financeira e governamental, além da omissão estrutural. Sendo assim, esse estudo objetiva examinar a eficiência das políticas públicas de saúde na prevenção da incidência dos casos de Mistanásia. Metodologicamente, é uma pesquisa básica, objetivando explicar o tema de forma qualitativa, baseando-se numa análise bibliográfica explicando a Mistanásia por intermédio de obras que discutem a temática, com principal foco as obras e citações dos autores: Ricci (2017), Namba (2015), Canotilho (2004), Brasil (2015). Ainda, no decorrer deste escrito, demonstra-se o quanto essa condição social é cruel, analisando o conceito, diferenciação, causas e consequências da Mistanásia, propondo soluções possíveis com base no ordenamento jurídico brasileiro.
Biodireito
INTRODUÇÃO A Mistanásia é uma condição social desumana que atinge, em grande parte, os indivíduos vulneráveis socialmente, sendo consequência de eventos violadores do direito à saúde, no qual, poderiam ter sido evitados. A nomenclatura que traduz essa condição foi criada em 1989 pelo teólogo moralista brasileiro, Márcio Fabri dos Anjos, como um neologismo ao antigo termo “Eutanásia Social” pelo fato de possuir incoerências entre a terminologia e a condição, tendo em vista, que Eutanásia significa a morte tranquila e planejada para poupar um indivíduo do sofrimento causado por alguma enfermidade incurável. Nesse sentido, o tema Mistanásia: a morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação do direito a saúde no Brasil, possui o intuito de solucionar o seguinte problema: Como as dificuldades encontradas pelo indivíduo, que depende das políticas públicas de saúde na garantia de seu direito, pode favorecer na incidência dos casos de Mistanásia? De modo geral, a contribuição maior para a sua ocorrência são as dificuldades que o cidadão passa para ter acesso aos serviços de saúde, e por isso, este estudo promove objetivos específicos para classificar a qualidade dos serviços de saúde como parte do mínimo existencial do cidadão, identificar a invocação do princípio da reserva do possível como forma de ocultar a má gestão de equipamentos médico-hospitalares, analisar a postura e o conceito de bioética como forma de evitar qualquer restrição ao exercício pleno da liberdade individual na garantia do caráter inviolável da vida humana em todas as suas fases e condições e apontar métodos afirmativos para garantir a sadia qualidade de vida de pessoas vulneráveis socialmente. Já o seu objetivo primordial procura examinar por meio de uma reflexão crítica a eficiência das políticas públicas de saúde na prevenção da incidência dos casos de Mistanásia com base em análises de obras que discutem a temática para a formulação de respostas ao problema levantado, com principal foco as obras e citações dos autores: Ricci (2017), Namba (2015), Canotilho (2004), Brasil (2015). Construiu-se este escrito com base na análise do conceito, diferenciação, causas e consequências da Mistanásia, motivado a propor soluções possíveis com base na postura do moralismo bioético. Portanto, justifica-se por sua relevância, explicando a mistanásia e demonstrando o quanto essa condição social é cruel em relação a sua forma de ocorrência, sendo consequência da violação do direito à saúde, tendo em vista a constante restrição ao exercício pleno da liberdade individual na garantia do caráter inviolável da vida humana.   Primeiramente, para melhor compreensão, é necessário contextualizar o leitor sobre o que é a bioética e o biodireito, sendo assim, a bioética é o ramo responsável pela discussão moral advinda do estudo dos avanços, descobertas e problemas da biologia e medicina, já o biodireito é um ramo do direito, considerado de direito público, responsável pela comparação dialética entre as relações jurídicas com as discussões morais propostas pela bioética, levando em consideração a dignidade da pessoa humana. A bioética adota uma postura moralista que buscando, incansavelmente, soluções para os diversos problemas e implicações morais decorrentes das condições sociais, biológicas e jurídicas, envolvendo, é claro, as modalidades de término de vida. Curiosamente, quando se fala em moralismo, a primeira coisa que se pensa é em algum instrumento normativo sistemático que propõe diversas regras rígidas impondo limites na investigação científica e nos progressos da ciência e tecnologia, mas, para a surpresa do leitor, é o contrário. No sentido filosófico da palavra, o moralismo é o estudo e análise da natureza humana nas suas diversas manifestações e nas relações sociais, como nas maneiras de pensar, sentir ou agir, dentre outros impulsos básicos levemente imperceptíveis, comum a todos os seres humanos e que não sofrem alterações pelos mais variados ambientes, ou seja, de grande importância no estudo do impacto e alterações maléficas impostas por pessoa contra pessoa e Estado contra pessoa em momentos vulneráveis, principalmente no fim da vida.   Nos estudos da bioética e do biodireito observa-se 5 (cinco) formas de término de vida, embora o foco deste ensaio ser em apenas um deles, é necessário uma breve explicação para o melhor entendimento, o que será de suma importância para o desenvolvimento de uma reflexão crítica e, também, para compreensão do quão grave é a Mistanásia. Assim sendo, as modalidades de término de vida se dividem em: 1) Eutanásia: Morte tranquila e serena, planeada para poupar um indivíduo do sofrimento causado por uma enfermidade ou condição incurável. 2) Distanásia: Prolongamento artificial da vida, mas por um pequeno período e de forma dolorosa. 3) Ortotanásia: Morte natural, sem nenhuma intervenção médica ou artificial. 4) Suicídio assistido: Morte auxiliada por terceiro, sendo um fato típico, ou seja, um ato criminoso. 5) Mistanásia: Morte prematura, dolorosa e miserável, que poderia ter sido evitada. Inquestionavelmente, a principal diferença entre a Mistanásia e as outras formas, é a crueldade, onde se explica pela forma como ocorre para sua caracterização, sendo necessário analisar alguns fatores que aconteceram com o indivíduo antes da morte propriamente dita, ou seja, o indivíduo deve se encontrar em uma situação vulnerável, dolorosa e miserável, como uma doença grave curável, machucado ou faminto, tendo em vista, a possibilidade da reversibilidade de sua condição, e por fim, sua morte prematura decorrente de uma ação ou omissão humana e/ou estatal, como maus tratos, abandono ou violência. Por fim, é importante salientar que o indivíduo deve possuir a vontade de permanecer vivo, valendo lembrar, que nem toda morte provocada por ação ou omissão humana é Mistanásia, sendo necessária a análise e confirmação das situações supracitadas, diferentemente da morte comprovadamente provocada por ação ou omissão estatal que será, em todos os casos, Mistanásia.   A forma mais comum da Mistanásia ocasionada pela ação ou omissão estatal, é a omissão de socorro estrutural que se resume na ausência de atenção do Estado em fornecer os insumos necessários para o adequado serviço de saúde ao indivíduo, como a falta de medicamentos de uso emergencial, onde o não atendimento imediato levará ao óbito, por exemplo: Soros antiofídicos (antídoto para picadas de cobras), antiescorpiônicos (antídotos para picadas de escorpiões), antiloxoscélicos (antídoto para picadas das aranhas mais comuns no Brasil), antiapílicos (antídoto para picadas de abelhas) e dentre outros, caracterizando uma imensurável consequência da violação do direito à saúde. Sem dúvidas, o descaso estatal, comum atualmente, é extremamente preocupante devido o importante papel que deveria estar atuando de defender o valor social, a dignidade e o caráter inviolável do direito à saúde em todas as classes sociais da população, principalmente ao cidadão que paga onerosos impostos. Além do grande aparato burocrático desnecessário e, em algumas vezes, inútil, que atrapalha um adequado atendimento, onde apesar das políticas públicas de saúde sejam implementadas de forma descentralizada nos municípios, a sua coordenação se mantém sob o âmbito federal e em decorrência disso menos contato com as regiões interioranas que carecem de melhores condições. Outrossim, a forma mais comum de Mistanásia ocasionada por ação ou omissão humana, é por erro médico (apesar da nomenclatura, é o ato causador de dano ao paciente provocado por qualquer profissional da saúde), imprudência (quando o médico age precipitadamente sem os devidos preparos ou exames), imperícia (ausência de conhecimento médico ou de atualização técnica) e negligência (quando o médico deixa de prestar seus serviços, omitindo-se, sem motivo justo). A Mistanásia por ação ou omissão humana mostra-se a mais cruel dentre suas causas, pois, é nela que o caráter indiferente do ser humano ganha materialidade pela ausência de valorização da vida de seu semelhante.   A morte mistanásica no Brasil ocorre como sequela da violação das condições mínimas para uma considerável qualidade de vida, tendo como principal fator a omissão de socorro estrutural como efeito da ineficiente gestão financeira e organizacional do setor responsável pelo sistema de saúde pública, em comparação às necessidades dos pacientes que utilizam dos serviços estatais. Deste modo: “Um exemplo seria o caso de idosos internados em hospitais ou hospícios onde não se oferecem alimentação e acompanhamento adequados, provocando, assim, uma morte precoce, miserável e sem dignidade”. (NAMBA, 2015, p. 224). Sendo assim, a má administração federal em oferecer condições adequadas de saúde, faz com que as direções dos estados e municípios elaborem novas condições, por intermédio de políticas públicas locais, para adaptação e melhoria da situação da saúde populacional respectiva a determinada região, aumentando os gastos e a necessidade de mão de obra qualificada. Porém, na maioria dos casos não funciona pela grande demanda, tendo em vista que, além das doenças e endemias, a violência em todo o território nacional gera vítimas todos os dias, preenchendo as vagas e lotando os leitos de hospitais e postos de saúde, obrigando a instauração de um controle baseado na relevância do estado clínico do paciente, gerando a possiblidade na incidência de mortes mistanásicas pela baixa qualidade dos serviços. “Emblemático é o caso da cidade de Bauru-SP. Trata-se de um inquérito inédito, instalado pela polícia civil, para apurar causas e responsabilidades de 581 mortes, ocorridas em três anos por ausência de internação hospitalar. Um óbito a cada três dias por falta de vagas na rede pública de saúde. São mortes mistanásicas que precisam ser apuradas e evitadas. Trata-se da “politização da morte”. (RICCI, 2017, p. 49). Ainda convém lembrar-se do reflexo comportamental que a mistanásia gera na população, onde, o indivíduo que presencia com frequência situações análogas, cria um sentimento apático entre ele para com outro indivíduo, ou seja, gera um exagero na valoração do individualismo pela insensibilidade em determinadas situações, o que prejudica ainda mais a situação do indivíduo vulnerável socialmente que precisa de ajuda cotidianamente ou quando necessita de um atendimento emergencial de qualidade. “A eutanásia social situa-se no campo econômico-sanitário quando a sociedade decide a sorte do doente, considerando apenas os recursos econômicos administrados com critérios de custo-benefício. Refere-se, particularmente, ao risco permanente de morte antecipada e prematura nas camadas pobres da população por falta de condições mínimas de vida e inadequado atendimento sanitário.” (RICCI, 2017, p. 44). Portanto, o descaso estatal somado a indiferença social favorece diretamente o surgimento de ambientes que atrapalham o desenvolvimento adequado da coletividade, ocasionando, direta e indiretamente a violação ao direito à saúde das pessoas pertencentes as regiões mais pobres da sociedade, cujas vidas não são devidamente valorizadas, surgindo o abominável fenômeno social conhecido como Mistanásia, e também, outras consequências colaterais.   Os aspectos jurídicos diversos que envolvem as modalidades de término de vida são de grande relevância para o surgimento de teses jurídicas e discussões científicas a respeito da conservação da sadia qualidade de vida, e principalmente a conscientização sobre a preservação da visão mística e romanceada da vida humana. A bioética e o biodireito, sendo os ramos responsáveis em originar essa modalidade de termino de vida, ocupam um pequeno espaço na grande galeria de outras matérias jurídicas públicas em debate no Brasil nos últimos anos, mas vem crescendo gradativamente a medida que as discussões sobre a saúde pública se desenvolvem, tais como: A judicialização da saúde e o conflito ideológico entre os institutos do mínimo existencial e da reserva do possível. Ademais, respectivamente, a judicialização da saúde caracteriza-se pela busca ao poder judiciário como último recurso do cidadão em obter medicamentos, no qual não tem acesso financeiramente, ou tratamento médico, quando negado pelo SUS, na esfera pública, ou por algum plano de saúde, na esfera privada.   “É comum que o Estado condicione sua efetivação aos limites financeiros fáticos e à escassez de recursos. O direito, portanto, passa não mais a ser visto de forma absoluta, podendo ser relativizado sob o argumento da insuficiência de recursos. Tanto em tribunais quanto no próprio âmbito dos juristas, o debate acerca da relação entre direitos e custos econômicos tem crescido e, inclusive, tem sido objeto de defesa do Estado em diversas ações judiciais” (BRASIL, 2015, p. 132).   Não apenas, o conflito ideológico entre os institutos jurídicos do Mínimo existencial e da reserva do possível, tem como origem pelo debate de suas respectivas funções e aplicação, pois o mínimo existencial pressupõe a garantia universal da proteção da integridade física e psíquica de todos os seres humanos, em todas as suas dimensões, gerando obrigação ao Estado em fornecer os recursos necessários para devida aplicabilidade dessa garantia. Em contrapartida, surge a reserva do possível como um limitador dessa obrigação, possuindo a premissa de que o Estado deve oferecer somente os recursos que entender necessários de acordo com sua capacidade orçamentaria, ou seja, uma forma de protecionismo econômico. “No Brasil, portanto [a reserva do possível], passou a ser fática, ou seja, possibilidade de adjudicação de direitos prestacionais se houver disponibilidade financeira, que pode compreender a existência de dinheiro somente na caixa do Tesouro, ainda que destinado a outras dotações orçamentárias! Como o dinheiro público é inesgotável, pois o Estado sempre pode extrair mais recursos da sociedade” (CANOTILHO, 2004, p. 481). Os três institutos jurídicos listados acima tem total interdependência, tendo em vista que para o conflito ideológico do mínimo existencial e da reserva do possível ter sido notado ao ponto de ganhar espaço no debate jurídico, precisaria (não necessariamente) de uma anterior postulação de ação que caracterizava um caso de judicialização da saúde. Dessa maneira, nota-se o grau de repercussão geral dos acontecimentos jurídicos descritos acima e também, mesmo que implícito, a sua relação com a Mistanásia, já que, no caso da judicialização da saúde, a demora no trâmite processual poderá levar o cidadão vulnerável, que necessita de medicamentos ou de tratamento médico, ao óbito de uma forma miserável e dolorosa. Porém, a solução do conflito ideológico entre o mínimo existencial e a reserva do possível pode ser decisivo no combate a incidência de mortes mistanásicas em casos de judicialização da saúde, pois o núcleo garantidor dos princípios debatidos aqui, baseiam-se na proteção a dignidade da vida humana, indo ao encontro do protecionismo dos direitos coletivos e difusos proposto pelo ordenamento jurídico brasileiro.   Mister se faz relevar os importantíssimos resultados desta pesquisa, as quais, demonstrou-se, por intermédio de pesquisa bibliográfica baseada em notícias em jornais de variados estados do Brasil, e em mídias sociais de fácil acesso, relatando que no Brasil, entre 2015 à 2018, foi enfrentado uma grande instabilidade política e econômica, repercutindo até os dias atuais como uma forma de “dano colateral”. Em consequência disso, nota-se o aumento exponencial de transtornos nos setores governamentais essenciais ao cidadão necessitado, em especial, o sistema público de saúde, provocando mortes em filas de hospitais e postos de saúde, por maus tratos, abandono e violência, caracterizando a Mistanásia. Portanto, o desequilíbrio econômico pela péssima gestão financeira e administrativa e a ineficiência das políticas públicas de saúde, ocasiona uma estagnação das estruturas públicas de hospitais e postos de saúde em todo o território nacional, e consequentemente, a decadência na qualidade dos atendimentos, gerando as circunstâncias ideais para acontecimento de mortes mistanásicas.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto anteriormente neste estudo, observa-se, no geral, o quanto a Mistanásia é cruel, suas formas de incidência e como é caracterizada, e por isso, percebe-se o quão a natureza humana pode ser fria, devido ao sentimento generalizado de indiferença em uma situação de vulnerabilidade. Sendo assim, pode-se elencar medidas para redução no número de casos de mistanásia, começando: Primeiramente, pela publicidade sobre o que é a Mistanásia, suas causas, consequências e seu impacto na sociedade, com a finalidade de provocar o debate sobre o assunto em universidades, faculdades e/ou escolas, conscientizando o maior número de pessoas. Outra possibilidade poderia ser a tipificação penal, aumento de pena ou agravante de pena, em casos que comprovadamente encaixam-se nos requisitos determinadores da Mistanásia, punindo com rigor os agentes causadores. Por fim, uma medida radical e talvez utópica, que seria uma alteração estrutural drástica, sendo a privatização dos serviços de saúde, promovendo a desvinculação da dependência orçamentária estatal e evitando desvios de dinheiro e corrupção, diminuindo a burocracia existente, deixando somente algumas unidades públicas de saúde estrategicamente posicionadas nas regiões mais pobres no Brasil. Portanto, conclui-se com este ensaio, a explicação sobre a cruel condição social denominada Mistanásia, além de possíveis soluções, destacando sua importância no debate público e conscientização popular, na qual, espera-se que o tema seja difundido, mesmo em pequeno número, tendo a possibilidade de um dia servir de base na aplicação de medidas preventivas locais contra esse mal e que as liberdades individuais sejam devidamente respeitadas.
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Consentimento livre e esclarecido: obrigação ética e jurídica do médico
O médico tem o dever de prestar ao paciente todas as informações relativas a seu tratamento, tais como potenciais riscos, possíveis intercorrências ou eventuais efeitos adversos, ocorrências clínicas imediatas e tardias que possam ser razoavelmente previstas, cuidados necessários durante todas as fases do tratamento proposto e ainda uso de medicações e mudanças de hábitos e estilo de vida. Esse dever de informar é imposto ao médico por determinação do Código de Ética exarado elos Conselhos de Medicina e também por imposição de Lei. Além de informar, o médico deve se certificar que o paciente, ou seu responsável, entendeu de forma totalmente clara as informações. O descumprimento desse dever acarreta, para o médico, infração ética e também responsabilidade jurídica do profissional, sendo, nessa última esfera, ensejadora de responsabilidade civil objetiva.
Biodireito
INTRODUÇÃO A Medicina é profissão regulamentada pela lei 3.268/1957, que institui os Conselhos de Medicina, e também pela lei 12.842/2013 (lei do ato médico). A lei 3.268/1957, por sua vez, dispõe que os Conselhos de Medicina são órgãos que fiscalizam e disciplinam a atividade da Medicina e também a classe médica. A mencionada lei ainda dá ao Conselho Federal de Medicina (CFM) a prerrogativa de criar o código de regras e normas que regem a Medicina e os médicos. Assim: “Art . 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em tôda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.   Art . 5º São atribuições do Conselho Federal: (…) É dever do médico obedecer aos mandamentos constitucionais, às disposições do Código de Ética Médica (CEM; Resolução CFM 2.217/2018), criado pela já citada lei 3.268/1957, às determinações da lei do ato médico e também às determinações do Código Civil brasileiro (CC/2002), uma vez que se formam vínculos contratuais e obrigacionais entre o médico e o paciente.   1          O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E DEVER DE INFORMAR É dever do médico, conforme o Princípio Fundamental XXI do Capítulo I, e arts. 22, 31 e 34, todos do CEM, informar ao paciente sobre o tratamento e seus eventuais riscos. “XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. É vedado ao médico: (…) Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”   Assim, é obrigação ética do médico obter o consentimento do paciente antes do início do tratamento, salvo em situações de emergência. A atual importância do consentimento do paciente decorre da própria evolução da relação médico-paciente, antes paternalista e hoje com maior ênfase à sua autonomia. Essa evolução deve-se à ampliação dos direitos civis e dos princípios bioéticos. A vontade do paciente deve ser respeitada, tendo ele autonomia para aceitar e mesmo recusar o tratamento proposto.   2 O DEVER DE INFORMAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O ordenamento jurídico determina, ao médico, o dever de informar, ao paciente, sobre o tratamento e dele obter consentimento prévio. A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) traz, em seu art. 3º, I, a solidariedade como fundamento; desse fundamento deriva a lealdade que deve pautar as relações humanas. O dever de informar prestigia essa lealdade. O CC/2002 diz, em seu art. 15, que pessoa nenhuma será obrigada a submeter-se, com risco de vida, a tratamento contra a sua vontade, deixando clara a necessidade, ainda que implícita, de obter-se o consentimento do paciente, previamente ao início do tratamento. Literis: Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Ainda: estabelece-se uma relação jurídica obrigacional entre o médico e o paciente, pois o primeiro assume a obrigação de dedicar seu conhecimento e zelo nos cuidados com a saúde do paciente, enquanto o segundo se obriga a remunerar o médico e também seguir as orientações recebidas. O CC/2002 também dá à relação médico-paciente natureza contratual, pois há, neste contexto, uma convergência de vontades, que é a melhora clínica do paciente. Nesse sentido, os art. 113 e 422 determinam que: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé; IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” O vínculo jurídico que se estabelece entre médico e paciente, que pode ser entendido como relação obrigacional, contrato e ainda negócio jurídico, deve se pautar na boa fé objetiva, que inclui o dever de informação como fundamento lógico. O Código de Defesa do Consumidor (CDC – lei 8.078/1990), que esta autora entende ser inaplicável ao trabalho do médico, haja vista a existência de leis especiais, as já citadas leis 12.284/2013 e 3.268/1957, também impõe o dever de informar, denotando a preocupação do legislador brasileiro com a lealdade e a boa-fé das relações humanas. “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (…)”   A jurisprudência também dá ao consentimento conotação obrigacional, imputando ao médico o dever de obtê-lo previamente ao início do tratamento, sob pena de privar o paciente do direito de autodeterminar-se e escolher se deseja submeter-se ou não àquele tratamento. Vejamos: “REsp 1540580/DF; RECURSO ESPECIAL 2015/0155174-9; Relator Ministro LÁZARO GUIMARÃES; Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador T4 – QUARTA TURMA; Data do Julgamento 02/08/2018; Publicação/Fonte DJe04/09/2018; RJTJRS vol. 311 p. 69 EMENTARECURSO ESPECIAL. (…) RESPONSABILIDADE CIVIL DO  MÉDICO POR INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO.   (…) OFENSA AO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL CONFIGURADO.  INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. (…)(…) 2.  É uma prestação de serviços especial a relação existente entre médico e paciente, cujo objeto engloba deveres anexos, de suma relevância, para além da intervenção técnica dirigida ao tratamento da enfermidade, entre os quais está o dever de informação.3. O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.4. O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais,  é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização  do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua  capacidade  de  se  autogovernar,  de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.(…)6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por  lhe  ter  sido  retirada  a  oportunidade de ponderar  os  riscos  e vantagens de determinado tratamento, que, ao final,  lhe  causou  danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.9. Inexistente legislação específica para regulamentar o dever de informação, é o Código de Defesa do Consumidor o diploma que desempenha essa  função,  tornando bastante rigorosos os deveres de informar  com  clareza,  lealdade e exatidão (art. 6º, III, art. 8º, art. 9º). (REsp 1540580/DF; RECURSO ESPECIAL 2015/0155174-9; Relator Ministro LÁZARO GUIMARÃES; Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador T4 – QUARTA TURMA; Data do Julgamento 02/08/2018; Publicação/Fonte DJe04/09/2018; RJTJRS vol. 311 p. 69) (grifou-se).”   Do julgado transcrito acima, concluímos que o consentimento do paciente é obrigação do médico, salvo em situações de emergência, e prestigia a boa fé objetiva, além de cumprir a determinação imposta pelo CEM, como declinado acima. Pode-se, ainda, imputar ao dever de informar e obter consentimento prévio ao início do tratamento, conotação de responsabilidade objetiva. O descumprimento desse dever já acarreta inadimplemento obrigacional, como bem se pode concluir da leitura do julgado transcrito acima. E mais: mero descumprimento do dever de informar já caracteriza inadimplemento sem necessidade de verificação de culpa. A imputação de responsabilidade civil independente do elemento culpa corresponde à responsabilidade civil objetiva, que prescinde da culpa. Para Sérgio Cavalieri: “Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”.  (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 137). Chama a atenção o crescente aumento de processos contra médicos, na Europa e nos Estados Unidos da América, com especial relevância para aqueles originados pelo descumprimento do dever de informar e obter prévio consentimento do paciente, conforme destaca Dias Pereira. (DIAS PEREIRA, 2004) Conforme a autora Lívia Haygert Pithan, o primeiro julgado brasileiro sobre essa matéria é recente, em relação à jurisprudência estrangeira. Vejamos: No Brasil, somente no ano de 2002 a expressão “consentimento informado” é  utilizada em uma decisão judicial. Em acórdão pioneiro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma-se a responsabilidade civil do médico e da instituição hospitalar pelos danos causados em uma paciente que se submeteu a um procedimento cirúrgico oftalmológico, sem ter sido informada devidamente de risco de cegueira, que acabou por ocorrer, gerando dano. Considerou-se a falta de informação como violadora das regras éticas que cercam a relação médico-paciente. Esta decisão é diferenciada em relação as que a sucedem sobre o tema, em especial por um aspecto: considera o consentimento informado derivado de uma exigência ética e não somente  de  uma regra  de  consumo. Posteriormente,  vários tribunais   estaduais   passaram   a   julgar   demandas  similares. ( PITHAN, 2012) Do exposto, pode-se concluir que o consentimento é instrumento para a concretização da boa-fé e da lealdade nas relações subjetivas, pois tutela os direitos personalíssimos do paciente. Vale dizer que o consentimento prestigia a dignidade da pessoa humana e a autonomia do paciente, princípios caros à CRFB/1988. A interlocução entre Direito e Medicina é cada vez maior. O médico diligente e atento às normas legais e éticas deve dar ao dever de informação peso de dever anexo à relação médico-paciente, como enfatizado em acórdão transcrito acima. Deve-se lembrar que a Medicina não é ciência exata e traz consigo riscos e imprevisibilidades.  Nem todas as possíveis complicações clínicas podem ser previstas. Assim, o médico deve informar ao paciente que o tratamento acarreta riscos e eventuais complicações. Essas informações prestadas pelo médico permitirão que o paciente exerça sua autonomia e escolha de forma livre e consciente se quer se submeter ou não àquele tratamento. Como corolário desse entendimento, de ser o consentimento prévio do paciente prestígio à sua autonomia e dignidade humana, a falha ou mesmo falta de informação caracteriza lesão aos seus direitos de personalidade, caracterizando verdadeiro descumprimento contratual. Atualmente, os Tribunais brasileiros entendem que o dever de informar é obrigação autônoma do médico, cujo descumprimento acarreta responsabilidade civil, ainda que o procedimento médico não tenha ocasionado complicações clínicas. Confira-se o julgado a seguir: (…)APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. (…) RESPONSABILIZAÇÃO SOLIDÁRIA DOS RÉUS PELA FALHA NO DEVER DE PRESTAR CORRETA INFORMAÇÃO. DANOS MATERIAIS MANTIDOS. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS.(…)3. Falha no dever de informar. Contudo, possível a responsabilização dos réus em virtude da falha no dever de prestar correta informação à paciente com relação aos riscos e possíveis consequências dos procedimentos a que pretendia se submeter. Caso em que evidenciado que a paciente não foi alertada das cicatrizes que apresentaria, notoriamente da grande possibilidade de que elas ficassem alargadas em razão da tensão da pele, vindo a necessitar de procedimento reparatório no futuro, ou mesmo de que teria outras opções de incisão cirúrgica. Violação do dever de informação que permite a condenação solidária dos réus nos moldes do parágrafo único do art. 7° do CDC. (…) (AREsp 1347109; Relator Ministro MOURA RIBEIRO; Publicação 27/08/2019; Decisão Agravo em Recurso Especial nº 1.347.109-RS (2018/0209529-0) (grifou-se)   Deve-se notar que o consentimento deve ser livre de coações e precedido dos esclarecimentos e das informações pertinentes ao tratamento médico proposto e ser dado por agente capaz. Pode ser verbal ou escrito, conforme a complexidade do tratamento. O médico deve provar que cumpriu seu dever de informar, mediante elaboração de termo de consentimento livre e esclarecido ou mesmo anotações no prontuário do paciente. Noutras palavras, há inversão do ônus da prova, em relação à obtenção de consentimento prévio do paciente. Como abordado adiante, neste trabalho, pode-se atribuir conotação de responsabilidade objetiva ao dever de informar, uma vez que seu inadimplemento acarreta responsabilidade civil, mesmo que o médico não tenha incorrido em conduta culposa e mesmo que o paciente não tenha apresentado qualquer intercorrência clínica ou cirúrgica. A obtenção do consentimento prévio encontra exceção: situações de emergência e urgência, uma vez que a obtenção de consentimento prévio em tais situações poderia  comprometer a boa evolução clínica. Rui Stoco ensina que: Outro aspecto importante a ser evidenciado é que a intervenção médica há, sempre, de estar precedida do consentimento do paciente ou de seu responsável, salvo, evidentemente, os caos de atendimento de emergência, quando haja risco de vida ou de dano físico irreversível ou quando, durante a intervenção cirurgíca, surge um fato novo, a exigir imediata providência, sem tempo para interrompê-la e consultar os familiares (STOCO, 2007). A falha no dever de informar caracteriza inadimplemento obrigacional e implica dever de indenizar.  Mesmo que não ocorram complicações clínicas ou cirúrgicas e o tratamento médico tenha sido bem sucedido, a falha ou falta de informação, o dever de indenizar estará presente, uma vez que o dever de informar é obrigação autônoma, conforme depreende-se do exposto nos parágrafos anteriores.   CONCLUSÃO É dever ético e legal do médico esclarecer previamente, ao paciente, ou a seu representante legal, sobre o tratamento proposto, assim como seus eventuais riscos, complicações e possíveis intercorrências. Para tanto, o médico deve explicar ao paciente, em linguagem acessível, todas as informações relativas ao tratamento, certificando-se que o paciente compreendeu. O objetivo é possibilitar que o paciente, com autonomia, decida se quer ou não submeter-se àquele tratamento. O consentimento pode ser verbal ou escrito, conforme a complexidade do tratamento médico. Resoluções do Conselho Federal de Medicina propõem forma escrita para tratamentos invasivos, mediante termo de consentimento livre e esclarecido, individualizado e com as informações pertinentes àquele tratamento específico. O Judiciário brasileiro entende, de forma majoritária, que cabe ao médico provar que cumpriu adequadamente o dever de informar, prova esta que poderá ser produzida com as anotações no prontuário médico, no caso de tratamentos ambulatoriais, consultas e exames simples e não invasivos, ou por meio de termo de consentimento livre e esclarecido, no caso de cirurgias e exames/tratamentos invasivos e complexos. É fundamental que o consentimento seja específico para o tratamento proposto e de fácil entendimento para o paciente, sendo vedados consentimentos genéricos e incompreensíveis. O descumprimento do dever de informar traz responsabilidade civil para o médico, por ofensa à autonomia do paciente, acarretando dever de indenizar. Ainda, extrai-se, dos argumentos expostos neste trabalho, que a responsabilidade civil decorrente do dever de informar é objetiva, pois o não cumprimento desse dever gera inadimplemento, ainda que o paciente não tenha apresentado qualquer intercorrência ou complicação ou mesmo que o médico tenha agido com perfeita técnica e diligência.
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Obrigação de Meios e Descabimento da Inversão do Ônus da Prova em Cirurgia Plástica Estética, em Anestesiologia e Odontologia
Artigo de revisão da doutrina e da jurisprudência afetas ao tema da modalidade obrigacional assumida por dentistas, anestesiologistas e cirurgiões plásticos, em cirurgia estética, e análise dos aspectos jurídicos frente aos aspectos clínicos e biológicos dos pacientes, para concluir que é descabida a atribuição de obrigação de resultado ao trabalho dos profissionais abordados neste artigo.
Biodireito
INTRODUÇÃO A jurisprudência majoritária e parte da doutrina entendem que a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia são obrigação de resultado, o que acarreta para o médico e o dentista o ônus de provar a improcedência da acusação feita contra eles. Esse ônus probatório é conhecido como inversão do ônus da prova, uma vez que inverte a regra de que a prova do fato alegado compete àquele que acusa, conforme a regra do art. 373, inciso I[2] do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015). Esta autora entende que a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia carregam de forma indissociável o elemento da imprevisibilidade, dada a variabilidade de respostas orgânicas individuais às intervenções. O fator de álea terapêutica não permite ao médico ou ao dentista controlar todo o tratamento, pois existem intercorrências clínicas e cirúrgicas imprevisíveis e incontroláveis, que escapam à atuação do profissional. Exatamente por serem a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia campos de atuação sujeitos ao fator aleatório e da imprevisibilidade, não é razoável exigir que aquele que foi acusado prove sua “inocência”. O médico e o dentista apenas podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles. A inversão do ônus probatório é, portanto, antijurídica. Compete àquele que acusou provar sua alegação. Portanto, a única conclusão possível é que a obrigação assumida pelo médico, na cirurgia plástica estética e na anestesia, e pelo dentista, nos tratamentos odontológicos, é de meios, não sendo cabível a inversão do ônus probatório. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Obrigação de meio. Obrigação de resultado. Ônus da prova.   1 REVISÃO SOBRE O REGRAMENTO JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL   1.1 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E DO DENTISTA – OBRIGAÇÃO DE MEIO Em nosso ordenamento jurídico, há dois tipos de obrigação: a de meios e a de resultado. Na primeira, existe o compromisso de usar os recursos disponíveis para obter-se um desfecho favorável, sem, no entanto, existir o compromisso de obter aquele determinado resultado. Vale dizer que, sem a culpa do médico/dentista não haverá responsabilidade civil. Na obrigação de resultado, há o compromisso de atingir um determinado resultado, que, não obtido, implica descumprimento da obrigação, que acarreta ao médico/dentista o dever de assumir a responsabilidade pelo inadimplemento. Obrigação de meio, para Pablo Stolze Gagliano (2017, p.144), é: “[…] aquela em que o devedor se obriga a empreender sua atividade, sem garantir, todavia, o resultado esperado […]”. O autor exemplifica obrigação de meio com o trabalho do médico, que deve usar os conhecimentos e recursos à sua disposição na assistência aos pacientes, sem obrigar-se a atingir determinado resultado. Na obrigação de meios, o médico e o dentista se obrigam a prestar assistência com diligência e segundo as melhores técnicas e conhecimentos a seu dispor. A promessa de cura não é exigida, mesmo porque tal promessa é inexeqüível, pois “O restabelecimento do doente nem sempre depende do médico. Alguns males são mais fortes que a ciência” (Ovídio, 43 a.C, In POLICASTRO, Décio. Erro médico e suas conseqüências jurídicas. 4 ed. ver, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013). A obrigação de meios, modalidade obrigacional imposta ao médico e ao dentista, não impõe ao profissional o ônus probatório; este entendimento é acertado, pois não é razoável exigir que alguém prove o que não depende apenas dele (caso da Medicina e da Odontologia, temas que serão desenvolvidos nos próximos tópicos). Existe, na responsabilidade do médico e do dentista, obrigação de meio, vale dizer, de diligência, contexto em que, do profissional, exige-se zelo, sem promessa de resultado, devendo ele se dedicar e empregar os recursos necessários e disponíveis. Se o médico e o dentista ocasionarem dano mediante atuação culposa ( tema que será desenvolvido adiante), surgirá responsabilidade civil, pois, segundo De Plácido e Silva: Dever jurídico em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas. Onde quer, portanto, que haja obrigação de fazer, dar ou não fazer alguma coisa, de ressarcir danos, de suportar sanções legais ou penalidades, há a responsabilidade, em virtude da qual se exige a satisfação ou o cumprimento da obrigação ou da sanção (SILVA, 2010, p.642). O ordenamento jurídico pátrio determina que seja feita reparação àquele que sofreu um dano decorrente de conduta de outrem. O art. 927 do Código Civil (CC/2002) diz que: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem[3] (BRASIL, 2002). O médico deverá usar todos os conhecimentos científicos e recursos disponíveis para controlar a doença e obter o melhor desfecho clínico possível, conforme comando contido no art. 32 do Código de Ética Médica (CEM)[4], alinhado com o conceito de obrigação de meio da doutrina civilista. A obrigação do médico é, portanto, classificada como obrigação de meio, pelo Código de Ética Médica. Vejamos o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP): Na obrigação de meio, o devedor obriga-se a fornecer os meios necessários para a realização de um fim, sem se responsabilizar pelo resultado. Nela, o devedor obriga-se tão-somente (SIC) a obrar com prudência e diligência normais na prestação de certo serviço para atingir um resultado, sem, no entanto, vincular-se à sua obtenção. Incumbe ao devedor tão-somente (SIC), desenvolver todos os esforços, todos os cuidados necessários à consecução do resultado, mas não se obriga ao resultado. E o que ocorre, basicamente, com o contrato de prestação de serviços médicos, pelo qual o profissional se compromete a cuidar do enfermo. O médico, é evidente, não pode garantir a cura do paciente. O credor da obrigação (no caso o paciente ou a pessoa que o contratou) tem o direito de exigir do médico o melhor tratamento possível, mas não poderá afirmar o inadimplemento da obrigação do médico, a não ser que se demonstre conduta negligente, imprudente ou desleal (BRASIL, 2000)[5]. A obrigação de meio é relacionada à responsabilidade subjetiva: Isto porque a obrigação que tais profissionais assumem é uma obrigação de “meio” e não de “resultado”. O objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas a prestação de cuidados conscienciosos, atentos […] os médicos se comprometem a tratar com zelo, usando os recursos adequados, sem comprometer-se com a cura. Somente serão responsabilizados na forma culposa em suas 3 modalidades. Daí o rigor da jurisprudência na exigência da produção dessa prova. Ao prejudicado incumbe a prova de que o profissional agiu com culpa, a teor do estatuído no art. 951 do Código Civil (GONÇALVES, 2018, p.266). Também o capítulo que trata dos Princípios Fundamentais, do CEM, afirma que a responsabilidade do médico é subjetiva: XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal, e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência (CFM, 2018). Em outras palavras, na obrigação de meio, a responsabilidade é subjetiva e exige comprovação de culpa, em suas três modalidades (imprudência, negligência ou imperícia). Na obrigação de resultado, a responsabilidade é objetiva e a culpa, presumida (POLICASTRO, 2013, p.9-10). Para Croce (2002, p.3) o médico assume obrigação de meio, obrigando-se a cuidar do doente com adequados conhecimentos, cuidado e diligência. Não obtenção de cura ou eventual morte do paciente não significa que o médico praticou ato ilícito. Matielo (1998, p.66) diz a regra é a necessidade de provar a culpa do médico, diante da alegação de suposto erro médico, uma vez que a este incumbe empregar todos os cuidados possíveis para uma boa evolução clínica; não obtenção desse objetivo não acarreta responsabilidade civil, pois esta exige a comprovação de culpa. O médico deve empregar zelo e cuidado. O erro somente ficará caracterizado com a demonstração de culpa, nas suas modalidades imprudência, negligência e imperícia. A responsabilidade civil do médico não decorre do mero insucesso ou insatisfação com o tratamento (MORAES, 2003). Assim, por ser a responsabilidade do médico subjetiva, deverá ser demonstrado, por quem pleiteia indenização ou mesmo demonstração de suposto “erro médico”, que o médico agiu com culpa. Não há presunção de culpa devido a uma não obtenção de determinado desfecho clínico. É necessário frisar que o desfecho da conduta médica e odontológica não é previsível, pois características próprias e inerentes ao organismo do paciente o influenciam, por mais correta que seja a conduta clínica.   1.2 DESCABIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE RESULTADO NO TRABALHO DO PROFISSIONAL LIBERAL DA ÁREA DE SAÚDE Como mencionado anteriormente, a obrigação de resultado é aquela que determina que o agente cumpra um resultado pré-determinado. Essa modalidade prevê que a não satisfação do resultado caracteriza inadimplemento obrigacional. O não atingimento daquele resultado desconsidera o elemento culpa, componente indissociável do trabalho do médico e do dentista, nos termos dos já citados artigos do CC/2002 e também do art. 14§ 4º do Código de Defesa do Consumidor (CDC).[6] A responsabilidade civil do médico e do dentista é subjetiva, por força de determinação legal e, principalmente pela presença do fator álea, representado pela possibilidade de ser o desfecho do tratamento médico ou odontológico determinado por condições fisiológicas e patológicas intrínsecas do paciente. Há, portanto, necessidade de comprovar-se conduta culposa do profissional para a configuração de responsabilidade. O trabalho do médico e do dentista é influenciado por diversos fatores inerentes ao próprio paciente, a chamada álea terapêutica. Exige-se, do médico e do dentista, uma atuação diligente e em conformidade com os conhecimentos científicos. Vale dizer, estes têm obrigação de diligência, dever este desconsiderado na obrigação de resultado, que se importa tão-somente com o resultado determinado. A obrigação de resultado e a responsabilidade objetiva são incompatíveis com o trabalho do médico e do dentista, justamente em razão do já mencionado fator álea terapêutica. Assim, percebe-se que a adoção da responsabilidade objetiva e de seu corolário, obrigação de resultado, afrontam a razoabilidade e a legalidade, quando da analise do trabalho do médico e do dentista. O Direito deve refletir o fato social. Regras e normas jurídicas que retirem a razoabilidade e ignorem a natureza dos acontecimentos humanos traduzem-se em instrumento de injustiça e geração de conflitos.   2 CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS SOBRE CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA, ANESTESIOLOGIA E ODONTOLOGIA As três áreas de atuação abordadas neste trabalho são afetas a cuidados curativos e preventivos de saúde, cercados da imprevisibilidade que lhes impõe o organismo humano, com respostas terapêuticas variadas e por vezes anômalas e imprevisíveis. As ciências da saúde não são exatas, pois: (…) há acontecimentos inevitáveis, fora do controle do profissional, mostrando que nem todo mau resultado está diretamente associado ao agir do médico ou a ato de outro prestador de serviços da saúde. Ocasionalmente surgem no doente reações imprevisíveis, intercorrências, complicações, sem que a causa possa ser atribuída ao atendimento médico em seu amplo significado. Uma terapia pode estar certa e a resposta decepcionar. Uma intervenção cirúrgica pode redundar em fracasso, embora realizada com aplicação das melhores e mais avançadas técnicas(…) (POLICASTRO, Décio. Erro médico e suas conseqüências jurídicas. 4 ed. ver, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p.3). Ainda: A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível. (GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica: as obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. Curitiba: Juruá, 2004.) Os trechos acima demonstram a acertada visão sobre a classificação da obrigação assumida pelo dentista, pelo anestesiologista e pelo cirurgião plástico, na cirurgia estética, como obrigação de meios, exatamente pela existência do falor álea. O médico e o dentista só podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles. Exigir que esses profissionais produzam prova de intercorrência alheia à atuação deles seria o mesmo que exigir-lhes prova de difícil ou impossível produção. Antes de prosseguir com os debates jurídicos sobre a modalidade obrigacional assumida por anestesiologistas, dentistas e cirurgiões plásticos no contexto da cirurgia estética, é oportuno analisar alguns aspectos dessas três áreas de atuação.   2.1 CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA A cirurgia plástica é uma das diversas especialidades estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 2.221/2018)[7] e se constitui em modalidade que utiliza técnicas cirúrgicas com o objetivo de reconstruir partes do corpo para tratar  doenças  e  deformidades  anatômicas, objetivando  proporcionar aos  pacientes  bem-estar físico, psíquico e social  e melhoria de sua saúde. A cirurgia plástica, seja a realizada com o objetivo de aprimoramento da aparência física (chamada de cirurgia plástica estética), seja aquela cujo objetivo é corrigir sequelas físicas de doenças (chamada de cirurgia plástica reparadora), está sujeita às mesmas circunstâncias imponderáveis que cercam a Medicina como um todo, pois seu campo de atuação é o corpo humano, com todas as suas peculiaridades biológicas individuais. Toda intervenção cirúrgica desencadeia uma reação orgânica conhecida como resposta endócrino-metabólica ao trauma, que nada mais é que o “(…) estresse causado pelo trauma cirúrgico, incluindo alterações endócrinas, metabólicas e imunológicas (…)”, ou seja, o conjunto de reações fisiológicas deflagradas pelo organismo submetido ao stress cirúrgico.[8] A resposta endócrino-metabólica ao trauma é, em outras palavras, a resposta fisiológica do paciente frente ao trauma (caso das cirurgias). Percebe-se que esse stress cirúrgico pode interferir acentuadamente no desfecho da cirurgia, com eventual complicação não decorrente da atuação do cirurgião e sim inerente à resposta do paciente à já citada resposta (endócrino-metabólica ao trauma). Do mesmo modo, o período pós operatório pode sofrer a influência de outros fatores exclusivos do paciente, como doenças associadas, que podem apresentar descompensação clínica, interação medicamentosa com remédios que não tenham sido informados ao médico e não adoção das recomendações do cirurgião. Assim, percebe-se que variáveis alheias à atuação do cirurgião podem determinar eventuais complicações, contexto em que a complicação não decorreu da conduta do médico e sim de reação orgânica do paciente ou mesmo de seu comportamento. É possível que ocorra uma complicação cirúrgica mesmo que a conduta do cirurgião tenha sido tecnicamente perfeita. Portanto, pode-se concluir que a cirurgia plástica estética está sujeita à imprevisibilidade (álea terapêutica). O desfecho de uma cirurgia estética não depende apenas do cirurgião plástico, mas também dos cuidados pré e pós operatórios do paciente, cuidados estes que apenas ele (paciente) controla, não tendo o cirurgião capacidade de neles atuar de forma direta, podendo fazê-lo apenas mediante recomendações. Do mesmo modo, o desfecho cirúrgico depende da resposta individual de cada pessoa, com suas características orgânicas próprias e inerentes de resposta endócrino-metabólica ao trauma, cicatrização e resposta farmacológica. Nesse sentido é o acórdão exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem a seguinte ementa: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE  RESULTADO.  SUPERVENIÊNCIA    DE    PROCESSO    ALÉRGICO.    CASOFORTUITO. ROMPIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE.(…)4. Recurso especial não conhecido.[9] (grifou-se)                Apesar de ter o Magistrado adotado o entendimento de ser a obrigação do cirurgião plástico de resultado, do que esta autora discorda, ficou claro que a reação própria do organismo do paciente, neste caso a alérgica, foi fator alheio à atuação do cirurgião e classificado como caso fortuito e imprevisível. Como já anteriormente mencionado, o que não depende do médico não pode por ele ser provado. Assim, a única conclusão possível é que a obrigação do cirurgião plástico, na cirurgia estética, deve ser de meios. O atual entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça é de que a cirurgia estética é obrigação de resultado (BORGES, Gustavo. Erro médico nas cirurgias plásticas. São Paulo: Atlas, 2014, p.252), conforme se extrai do julgado a seguir. “nas obrigações de resultado, como na cirurgia plástica embelezadora, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva, mas transfere para o médico o ônus de demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial 1.180.815/MG. Tal entendimento não pode prevalecer, pois ignora as peculiaridades biológicas do organismo humano e as alterações fisiológicas decorrentes do procedimento cirúrgico, assim como as intercorrências clínicas desencadeadas por fatores exclusivos do paciente. O Direito, ciência que cria regras para organizar o convívio social, não pode se afastar dos acontecimentos biológicos e naturais que impactam a vida das pessoas, sob pena de perder seu papel de pacificação das relações humanas e tornar-se instrumento de injustiça.   2.2 ANESTESIOLOGIA A anestesiologia é uma das diversas especialidades reconhecidas pelo CFM, nos termos da já citada Resolução CFM nº 2.221/2018 e tem como campo de atuação “ (…) a responsabilidade do médico de anestesiar o paciente e, após, recuperá-lo, dentro de suas condições (…), devolvendo-lhe (…) os sentidos”. (Apud Sergio Domingos Pittelli e Mário Flávio Seixas – Saúde, Ética & Justiça. 2012;17(1):21-5). (grifou-se). Nas sábias palavras de Genival Veloso de França: “(…) não significa apenas um procedimento mecânico ou a decisão preferencial do anestesista, mas uma questão eminentemente clínica, cuja avaliação se dê caso (…). Para tanto, leva-se em conta seu estado físico e mental, seu diagnóstico, suas condições fisiológicas, as influências farmacológicas e o tipo de operação (…). Em suma: a indicação de uma anestesia é antes de tudo uma decisão clínica”. (FRANÇA, Genival Veloso. http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmpb/artigos/Anest_meio.htm) Para executar sua tarefa, o anestesiologista utiliza diversos fármacos com o objetivo de induzir inconsciência no paciente. Esses fármacos têm o potencial de interagir com medicamentos usados pelo paciente e terem seu metabolismo influenciado por doenças associadas. Em outras palavras, as condições prévias inerentes ao organismo do paciente têm grande influência sobre a ação e metabolismo das substâncias anestésicas. Percebe-se que a atuação do anestesiologista também está sujeita a álea terapêutica e imprevisibilidade, da mesma forma que aquelas observadas na cirurgia plástica estética. O ato anestésico é um ato médico[10], nos termos da Lei do Ato Médico ( lei nº 12.842/ 2013) e, como tal, sujeito a toda sorte de intercorrências clínico-cirúrgicas e interações fisiológicas e medicamentosas. Não é a mera supressão da consciência, com posterior restauração do estado de consciência prévia. Essa seria uma visão muito simplista de um ato médico tão complexo. Alegar que o atual avanço dos aparelhos e das substâncias farmacológicas usados atualmente seria motivo hábil para impor ao anestesiologista a garantia de obtenção de um determinado resultado, como entendem Sant’ana[11] e Matielo[12], seria ignorar por completo as possíveis intercorrências clínicas desencadeadas por fatores exclusivos do paciente e exigir do médico que ele controle o que escapa à sua atuação. Seria menosprezar o imponderável que permeia toda a atividade médica.  O ato anestésico é cercado por álea e imprevisões. A única conclusão coerente, portanto, é que não é possível impor ao anestesiologista a obtenção de um determinado resultado, mas apenas o emprego de zelo, diligência e dos melhores conhecimentos científicos em prol do paciente, o que se amolda ao conceito de obrigação de meio. Por derradeiro, as prudentes e sábias palavras de Genival Veloso de França, já citado nesta obra: “Exigir-­se deles uma obrigação de resultado é, no mínimo, desconhecer os princípios mais elementares dessa especialidade”. Acrescenta que: “A obrigação do anestesiologista é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem, no entanto, poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando o especialista agiu de acordo com a “lei da arte”, ou seja, se os meios empregados eram de uso atual é sem contra-indicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma ‘obrigação de resultado’, não seria apenas um absurdo. Seria uma injustiça”. O autor entende, muito acertadamente, que as condições fisiológicas e patológicas do paciente e as decorrentes da própria limitação da ciência impõe dever de diligência sem promessa de resultado, como já extensamente abordado anteriormente. Dessa forma, esta autora entende que o posicionamento da doutrina de ser a anestesiologia obrigação de resultado (POLICASTRO, Décio. Erro médico. 4 ed. rev, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p.105) é equivocada. A correta e justa classificação, como exaustivamente demonstrado, é que a obrigação é de meios.   2.3 ODONTOLOGIA A odontologia tem como área e campo de atuação a saúde bucal humana e patologias a ela correlatas e também está permeada pelo fator álea. Em outras palavras, o dentista tem sua atuação cercada de possíveis intercorrências e situações imprevisíveis, a exemplo do anestesiologista e do cirurgião plástico: descompensação de patologias associadas, variações anatômicas apresentadas pelo paciente, resposta anômala a fármacos e, com especial relevância, cuidados do paciente com higiene bucal, cuidados estes que podem determinar o sucesso ou insucesso do tratamento e que escapam à atuação direta do dentista, que pode apenas orientar o paciente quanto a esses cuidados. O atual entendimento doutrinário (KFOURI NETO, Michel. Responsabilidade civil do médico. 10 Ed rev, atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 2019, p.336) e jurisprudencial, conforme transcrição abaixo, de ser a odontologia obrigação de resultado, sob o argumento errôneo de serem as patologias dentárias limitadas a pequena área, é totalmente descabido, sob pena de se menosprezar as condições fisiológicas e patológicas intrínsecas dos pacientes. Confira-se a transcrição do julgado citado no parágrafo anterior: TJSP, Ap. 3000623-42.2012.8.26.0309. Rel. Des. A.C. Mathias Coltro.  j 15/03/2017. A doutrina entende assim: “(…) a patologia das infecções dentárias corresponde etiologia específica e seus processos são mais regulares e restritos, sem embargo das relações que podem determinar com desordens patológicas gerais; consequentemente, a sintomatologia, a diagnose e a terapêutica  são muito mais definidas e é mais fácil para o profissional comprometer-se a curar”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v. 1, n. 121, p. 319). A conclusão lógica e razoável é que a odontologia, por ser área do conhecimento que trabalha com a saúde, encerra imprevisibilidades e riscos a ela inerentes; adotar a modalidade de obrigação de resultado seria desconsiderar essa realidade inexorável e incorrer em extrema injustiça para com os profissionais.   3 ENTENDIMENTO DA ÁLEA TERAPÊUTICA NO DIREITO COMPARADO No Brasil, observa-se entendimento jurisprudencial majoritário de ser a obrigação assumida pelo cirurgião plástico em procedimentos estéticos, do dentista e do anestesiologista, de resultado, com total desconhecimento dos conceitos médicos e odontológicos. Nota-se, porém, que em outros países o tema recebe tratamento diverso. Em 1962, Henri Lalou já apresentava o entendimento que: cada vez que o resultado buscado pelas partes é tido por elas como aleatório, a obrigação é uma simples obrigação geral de prudência e diligência (meio); se este resultado é, ao contrário, considerado como possível de ser alcançado sem álea, então a obrigação é determinada (resultado) (LALOU, Henri. Traité pratique de la responsabilité civile. 6 éd. Paris: Sirey, 1962, p. 279, v. 1). Em 1977, o autor Jean Penneau resumiu o assunto da seguinte forma: A jurisprudência admitiu, ainda que com uma certa hesitação, que a obrigação do cirurgião estético não era, fundamentalmente, diferente da obrigação de qualquer outro cirurgião, em virtude da álea inerente a todo ato cirúrgico. (PENNEAU, Jean. La responsabilité médicale. Paris: Sirey, 1977, p. 35). E acrescentou, em 1992: Alguns atos médicos têm dado lugar, sob este ponto de vista, a algumas hesitações. Foi assim com a cirurgia estética, mas ela permanece submetida ao regime das obrigações de meios, por estar inserida, fundamentalmente, na álea de todo ato cirúrgico (PENNEAU, Jean. La responsabilité du médecin. Paris: Dalloz, 1992, p. 9). Os franceses, estudiosos do instituto jurídico da responsabilidade médica, desde a década de 1970, já haviam superado o equivocado entendimento de ser a atividade médica, em certos tipos de procedimento, uma obrigação de resultado, adotando atualmente a correta classificação de obrigação de meios. Outro não pode ser o entendimento, dada a imprevisibilidade da fisiologia humana; toda a intervenção sobre o corpo humano é aleatória. Certo e justo o entendimento da doutrina e da jurisprudência francesas. Fica nítido o descompasso do ordenamento e da doutrina brasileiros, com claro desconhecimento da fisiologia humana. Mais que necessária a mudança no pensamento jurídico pátrio. Alguns autores brasileiros, no entanto, já adotavam esse entendimento, a exemplo do Desembargador Sylvio Capanema, em 1990: Não nos parece, data venia, que se possa classificar uma cirurgia, e nesse plano as cirurgias plásticas se equiparam às de qualquer outra espécie, de obrigação de resultado, porque, como se sabe, quando se trata de mexer com a fisiologia humana, além da técnica empregada pelo médico, havida no conhecimento científico, há sempre um outro componente que o homem, frágil e impotente diante do desconhecido, chama de imprevisível. Então, ninguém pode se obrigar pela realização plena de uma tarefa que em parte, ou até em grande parte, está fora dos limites de atuação ou deliberação(…) ( Rio de Janeiro. Tribunal de Justiça. Ac. Apel. nº 1.329/90. Rel. Des. Carpena Amorin. J. 6 nov. 1990). O Ministro Carlos Alberto Direito, em palestra durante o 3º Seminário da Câmara Técnica de Cirurgia Plástica, assim se manifestou: para concluir, em relação à rigidez pretoriana em estabelecer sem questionamentos a natureza da obrigação do cirurgião plástico, na cirurgia embelezadora ou estética, sempre, como sendo de resultado, sem levar em conta o fator álea existente em todos os processos invasivos do organismo humano, com ênfase que: ‘O que não se pode admitir é a repetição, a meu ver, de um standard jurisprudencial que está em desalinho com a realidade mais moderna dos avanços da ciência médica e da ciência jurídica’(In Apel. Cív. citada, nº 863/98. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Voto vencido do Des. Roberto Wider, p. 76). Em 1997, Ruy Rosado de Aguiar Jr., então Ministro do Superior Tribunal de Justiça, disse sobre a cirurgia estética: O acerto está, no entanto, com os que atribuem ao cirurgião estético uma obrigação de meios. Embora se diga que os cirurgiões plásticos prometam corrigir, sem o que ninguém se submeteria, sendo são, a uma intervenção cirúrgica, pelo que assumiriam eles a obrigação de alcançar o resultado prometido, a verdade é que a álea está presente em toda intervenção cirúrgica, e são imprevisíveis as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In Revista Jurídica. Porto Alegre: Síntese. Ano XLV, nº 231, jan/97 – Assunto Especial –, p.131). Claro está que o entendimento ainda dominante na esfera judicial brasileira exige urgente modificação, pois seria um grande erro conceituar o trabalho do médico (e do dentista) como uma obrigação de resultado, considerando o inegável fator álea inerente às cirurgias (e demais tratamentos).   CONCLUSÃO          Por serem a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia passíveis de álea terapêutica, não é razoável exigir que estes profissionais assumam obrigação de resultado, com o ônus de provar a improcedência de acusação contra eles deduzida. Ao contrário, a obrigação desses profissionais é de meios, não comportando exceções para a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia, na visão desta autora. Desses profissionais se exige uma atuação zelosa, diligente e conforme diretrizes e protocolos aceitos pelas respectivas sociedades científicas. O médico e o dentista só podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles, motivo pelo qual não é possível presumir culpa em caso de insucesso terapêutico. Inverter o ônus da prova seria o mesmo que exigir a prova de difícil ou impossível produção, situação vedada pelo art. 373 § 2º do CPC/2015.[13] Por ser a obrigação desses profissionais de meios, vale a regra prevista no art. 373 I do já citado CPC/2015, de que compete àquele que acusa provar o alegado. Assim, é descabida a inversão do ônus probatório quando da verificação da responsabilidade dos três profissionais citados nesta obra, por impor a eles responsabilidade sobre intercorrências imprevisíveis, pois não se pode exigir previsão, e conseqüente responsabilização, do extraordinário e imprevisível. No ensinamento de Michel Kfouri Neto (KFOURI NETO, Michel, p. 217), desfecho “adverso que se deve exclusivamente à reação imprevisível e inevitável (…) inexistirá o dever de indenizar”, tendo a palavra indenizar conotação de ser responsabilizado. Inversão do ônus da prova imposta por obrigação de resultado e presunção de culpa dos profissionais ignora a fisiologia humana e é, portanto, desarrazoada, além de ser antijurídica, pois afronta o comando do art. 14 §4º do CDC, que impõe demonstração de culpa ao profissional liberal, sem fazer distinção entre eles. O fator álea estará sempre presente e não pode ser ignorado. A diligência do profissional, fator fundamental, não elimina a possibilidade de mau desfecho clínico, que pode se dever a fatores fisiológicos e patológicos exclusivos do paciente ou mesmo de seu comportamento. Nunca é demais dizer que é arbitrário atribuir obrigação de resultado a áreas cercadas por imprevisibilidade. Tanto é assim que autores mais atualizados sobre a acertada visão do Direito comparado e atentos ao obrigatório conhecimento da fisiologia humana já manifestaram o correto entendimento de ser a obrigação do anestesista e cirurgião plástico, em cirurgia estética, obrigação de meios. O mesmo entendimento deve ser aplicado à odontologia, pelos argumentos anteriormente expostos. Oportuno lembrar as palavras de Fachin: “Há um vazio na doutrina civilística brasileira, que vai do desconhecimento à rejeição de novas idéias”, para, em seguida, concluir que “a técnica engessada das fórmulas acabadas não pode achar guarida em um Direito que se propõe aberto e sensível às modificações das realidades sociais” (FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) Repensando fundamentos do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 318). Por derradeiro, o ensinamento do médico Prof. Dr. Irany Novah Moraes, “se o erro só pode ser avaliado pelo resultado, o médico só deve responder pelo que depende exclusivamente dele e não da resposta do organismo do paciente”, com o que a autora deste trabalho concorda totalmente. (MORAES, Irany Novah. O erro médico e a lei).
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Dos Estudos Sobre o Canabidiol e as Políticas Públicas de Saúde Voltadas Aos Portadores de Epilepsia
RESUMO: Apesar de existir protocolo próprio do SUS para diagnóstico, tratamento e acompanhamento da epilepsia, cerca de 30% são refratários. Em virtude dessa resistência medicamentosa, novos horizontes têm surgido, abrindo espaço para a investigação científica sobre os efeitos do canabidiol (CBD) nos pacientes epiléticos. Estudos apontam que o Canabidiol tem sido eficaz na melhora seja na frequência, duração ou gravidade gravidade das crises epilépticas, havendo em alguns casos remissão total da doença. Até a presente data, não existe nenhuma medicação à base de Canabidiol incorporada à lista do SUS, o que por evidente acaba por “brecar” um tratamento adequado aos portadores de epilepsia que não dispõem de recursos financeiros para sua importação. Assim sendo, propõe-se um repensar do poder público, sobre a política pública de saúde atual, para que vislumbre uma cobertura dessas medicações por parte do Estado.
Biodireito
INTRODUÇÃO A epilepsia é uma alteração temporária e reversível do funcionamento do cérebro, que não tenha sido causada por febre, drogas ou distúrbios metabólicos, sendo uma das doenças neurológicas mais comuns do mundo[2]. No que tange ao controle/cura da doença, o Ministério da Saúde possui protocolo onde se estabeleceu métodos de diagnóstico, tratamento e acompanhamento da doença, estando dentre as medicações previstas: clobazam, levetiracetam, vigabatrina, dentre outros. Ocorre que tais medicações, por vezes, são insuficientes para a finalidade que as destinam, considerando cerca de 30% portadores de epilepsia refratária[3]. Em virtude dessa resistência medicamentosa, novos horizontes têm surgido, abrindo espaço para a investigação científica sobre os efeitos do canabidiol (CBD) nos pacientes epiléticos. Estudos apontam que o Canabidiol tem sido eficaz na melhora seja na frequência, duração ou gravidade das crises epilépticas, havendo em alguns casos remissão total da doença. Assim sendo, pode-se pensar em medicações com tal substância seriam uma boa alternativa para o tratamento tradicional ofertado. No Brasil, a aceitação do Canabidiol está sendo de forma gradativa, tendo a Anvisa reclassificado-o em substâncias reconhecidas e controladas pela agência, não sendo mais de uso proscrito (proibido). Apesar de não ter qualquer medicação destinada aos epilépticos registrada no Brasil à base de CBD, a ANVISA permite a sua importação. Mesmo com tais avanços, até hoje nenhuma medicação à base de Canabidiol foi incorporada à lista do SUS, o que por evidente acaba por “brecar” um tratamento adequado aos portadores de epilepsia que não dispõem de recursos financeiros para sua importação. Sugere então um repensar sobre tal situação pelo Poder Público. O presente artigo está estruturado em seis partes: primeiro se traz a introdução ao tema pesquisado; segundo se apresenta dados sobre a epilepsia; no terceiro fala das atuais políticas públicas voltadas aos portadores de epilepsia; quarto traz os experimentos com canabidiol; no quinto mostra como o poder público vem se comportando frente às evidencias do canabidiol e, por fim, a conclusão.   A epilepsia é um distúrbio genético ou adquirido (por trauma ou outras doenças) que leva à atividade excessiva e anormal das células nervosas do cérebro, causando eventualmente episódios conhecidos por convulsões[4]. Para que seja diagnosticada a epilepsia, há necessidade de ocorrência de pelo menos uma crise epilética. Todavia, na prática, a epilepsia é diagnosticada quando preenche um dos seguintes requisitos: a)  pelo menos duas crises não provocadas (ou reflexas), ocorrendo com intervalo maior que 24 horas; b) uma crise não provocada (ou reflexa) e que o cérebro, por qualquer motivo, demonstre uma tendência patológica e duradoura de gerar novas crises epiléticas, nos próximos 10 anos, similar ao risco de recorrência geral (pelo menos 60%) após duas crises não provocadas; c) quando se tem um diagnóstico de síndrome epilética específica[5]. O termo “não provocado” implica na ausência de um fator temporário ou reversível que tenha reduzido o limiar e produzido uma crise naquele momento, como por exemplo: febre, drogas ou distúrbios metabólicos[6]. Não provocada é, no entanto, um termo impreciso, porque nunca podemos ter certeza de que não houve um fator provocativo. Durante uma crise epilética, o indivíduo apresenta comportamento, sintomas e sensações que não podem ser controlados por ele, tais como: movimentos descoordenados, confusão mental, e em algumas vezes, perda de consciência[7]. A epilepsia é um dos transtornos neurológicos mais frequente que existe, atingindo cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, 40 milhões delas em países em desenvolvimento[8], ficando atrás apenas da enxaqueca[9]. A probabilidade de um indivíduo ser afetado pela epilepsia ao longo da vida é cerca de 3%[10]. Nos Estados Unidos, estima-se que existem 3 milhões de pessoas com epilepsia, sendo cerca de 500 mil pessoas não são ajudadas por medicamentos atuais, de acordo com The American Epilepsy Society. Cerca de 50.000 morrem a cada ano por causa das convulsões[11]. Segundo estimativas do Ministério da Saúde, são diagnosticados cerca de 157.070 casos novos de epilepsia a cada ano no Brasil[12]. Estudos feitos, apontam uma prevalência da doença de 11,9/1.0000 pessoas, na grande São Paulo[13]; já em Porto Alegre, apontam que 16,5/1.0000 pessoas possuem a doença[14]. Tais dados alertam que a epilepsia deve ser encarada com seriedade e que se trata, sem sombra de dúvidas, de uma questão de política pública relevante.   A epilepsia é doença que possui tratamento com regulamentação própria pelo SUS, através da Portaria Conjunta nº 17, de 21 de junho de 2018, do Ministério da Saúde. Nesta portaria, estão estabelecidos os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos indivíduos com esta doença. Dentre as medicações fornecidas pelo SUS para tal enfermidade estão: carbamazepina, clobazam, clonazepam, levetiracetam, etossuximida, fenitoína, fenobarbital, gabapentina, topiramato, lamotrigina, vigabatrina, ácido valproico e primidona[15]. Ocorre que tais medicações podem apresentar diversos efeitos colaterais, tendo como principais, por exemplo: ácido valproico/valproato de sódio, que pode causar tremor, alterações da função do fígado, diminuição das plaquetas, ganho de peso e queda de cabelos; já o carbamazepina pode causar náusea, vômitos, problemas para caminhar, transtorno de memória; o fenobarbital: tontura, depressão, mudança no comportamento, transtornos de memória e de concentração[16]. Além de todos esses efeitos colaterais, as medicações que são fornecidas pelo SUS têm, por muitas vezes, se mostrado insuficientes para a cura/melhora dos pacientes que apresentam epilepsia, sendo tal doença considerada refratária- difíceis controle medicamentoso. Apesar de ter um arsenal de diversos fármacos disponíveis para tratamento, estima-se que cerca de 30% dos pacientes sejam refratários, que continuam a ter crises epiléticas, sem remissão, apesar de tratamento adequado com medicamentos anticonvulsivantes[17]. Na definição proposta pela International League Against Epilepsy, as epilepsias resistentes a tratamento são aquelas em que ocorre falha de resposta ao adequado  ensaio clínico com dois anticonvulsivantes tolerados e apropriadamente usados (seja como monoterapia ou em combinação) para alcançar remissão de crises de modo  sustentado.[18] Em virtude disso, o campo científico tem buscado outras alternativas ao tratamento, visando sempre atender a três critérios: risco de recorrência de crises, consequências da continuação de crises para o paciente e eficácia e efeitos adversos do fármaco escolhido para o tratamento[19]. Diante de tal cenário, uma nova medicação vem ganhando destaque, que são a base de canabidiol, oriundo da Cannabis Sativa.O canabidiol (CBD) apresenta um mecanismo de ação distinto dos fármacos anticonvulsivantes convencionais e, a princípio, têm efeitos colaterais bem tolerados pelos pacientes[20], principalmente pela ausência de efeitos psicóticos e risco de desenvolvimento de dependência típicos do Δ-9tetraidrocanabinol (THC). Estudos apontam que medicações à base de Canabidiol têm sido eficazes na melhora na frequência, duração e gravidade das crises epilépticas e, em alguns casos, há remissão total da doença, sendo considerada uma boa alternativa aos tratamentos tradicionais, até mesmo por que seus efeitos colaterais são menores (sem alterações psicosensoriais, baixa toxibilidade e alta tolerabilidade).   Podemos citar o experimento de Cunha[21], que avaliou numa primeira fase o uso do canabiol em pacientes saudáveis, sem alterações nos exames clínicos e laboratoriais. Todos os pacientes e voluntários toleraram CBD muito bem e nenhum sinal de toxicidade ou efeitos colaterais graves foram detectados no exame. 4 dos 8 indivíduos com CBD permaneceram quase livres de crises convulsivas ao longo do experimento e 3 outros pacientes demonstraram melhora parcial em sua condição clínica. O CBD foi ineficaz em apenas 1 paciente. A condição clínica de 7 pacientes com placebo permaneceu inalterada, enquanto a condição de 1 paciente melhorou claramente. Outro estudo interessante foi de Hess[22], que analisou a eficácia, segurança e tolerabilidade do canabidiol junto aos pacientes portadores de complexo de esclerose tuberosa- TSC (que é um distúrbio genético, sendo sua maior manifestação neurológica através da epilepsia, afetando certa de 85% dos pacientes dos quais 63% desenvolvem epilepsia resistente ao tratamento). Como resultado, verificou que houve uma redução para 50% nas crises convulsivas, após 3 meses de tratamento, com uso de canabidiol. Em ambos estudos- Cunha e Hess, os pacientes continuaram a tomar os medicamentos antiepiléticos prescritos antes dos experimentos. Estudo mais recente, foi realizado por Dr. Orrin Devinsky, médico da New York University School of Medicine, que foi autorizado pela Food and Drug Administration (FDA), sendo conduzido um estudo aberto com um produto contendo 98% de CBD, cujo nome comercial é Epidiolex fabricado pela GW Pharmaceutical, em crianças com epilepsias raras, com 2 anos de idade ou mais, associada com síndrome de Lennox-Gastaut e síndrome de Dravet. A síndrome de Dravet é uma disfunção genética rara do cérebro que começa no primeiro ano de vida. Já a síndrome de Lennox-Gastaut (LGS) é uma forma de epilepsia com múltiplos tipos de convulsões que começam na primeira infância, geralmente entre 3 e 5 anos.[23] Mais de 500 pacientes com Dravet e LGS participaram de estudos clínicos da referida medicação por 14 semanas. Os participantes dos estudos geralmente falharam em 4 a 6 medicamentos convulsivos anteriores[24].  93% dos pacientes estavam tomando pelo menos 2 outros medicamentos para convulsões durante o estudo, porém suas crises ainda não eram controladas. Clobazam, valproato e estiripentol foram os mais comuns.  O epidiolex, tomado junto com outros medicamentos, mostrou-se eficaz na redução da frequência de crises quando comparado ao placebo. Pacientes com Dravet, tiveram uma redução de 39% das convulsões contra 13% daqueles que tomaram placebo (dados mensais) e 7% dos pacientes que tomaram, não relataram mais convulsões, em comparação com 0 pacientes que receberam placebo[25]. Os pacientes com LGS, tiveram uma redução de 42% das convulsões contra 17% daqueles que tomaram placebo (dados mensais) e 7% dos pacientes que tomaram a droga não relataram mais convulsões, em comparação com 1% dos pacientes que receberam placebo[26]. Os efeitos colaterais mais comuns do epodiolex incluem sonolência, diminuição do apetite, diarreia, aumento das enzimas hepáticas, sensação de cansaço e fraqueza, erupção cutânea, problemas de sono e infecções.   Em janeiro de 2015, o Canabidiol (CBD) deixou de ser substância de uso proscrito (F2) no Brasil, sendo reclassificada pela ANVISA, para ser incluída na lista C1 da Portaria 344/98- substâncias reconhecidas e controladas pela agência. Ocorre que o canabidiol não consegue ser isolado totalmente de outros canabidiódes que são proibidos no Brasil, tais como o THC, embora estejam em quantidades menores. Assim, a ANVISA, por meio da Resolução – RDC nº 66, de 18 de março de 2016, permitiu a importação, em caráter de excepcionalidade, por pessoa física e para uso próprio de substâncias que contenham canabidiol (CBD) e/ou tetrahidrocannabinol (THC)- apesar desta ser de uso proscrito no Brasil, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica, desde que as concentrações não seja superior a 30 mg, de cada uma[27]. Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina, através de sua Resolução 2.113 de 30 de outubro de 2014, aprovou o uso compassivo para o uso do canabidiol para tratamento, exclusivo, de pacientes com epilepsia refratária aos tratamentos convencionais, na infância e adolescência. Tal determinação restringiu a área de neurologia e psiquiatria. Um dado curioso é que a prevalência da epilepsia, nos países desenvolvidos, aumenta proporcionalmente com o aumento da idade. Já nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, geralmente atinge seu ápice na adolescência e na fase adulta[28]. Pode-se concluir que os adultos acabaram sendo prejudicados na referida resolução. No ano de 2017, a ANVISA aprovou o registro da medicação Metavyl,  que é um fármaco derivado do CBD e THC, com indicação apenas para esclerose múltipla.Todavia, o Mevatyl não é indicado para o tratamento de epilepsia, pois o THC, uma de suas substâncias ativas, possui potencial de causar agravamento de crises epiléticas[29]. Assim, em tese, os portadores de epilepsia dependem necessariamente da importação dos produtos de CBD, face a ausência de fármacos autorizados/registrados no Brasil. Consulta feita junto à ANVISA[30], os pedidos de medicações à base de canabidiol, entre os anos de 2016 a 2018 quadruplicaram, sendo 901 pedidos em 2016, 2.181 em 2017 e 3.613 em 2018. Nesta mesma pesquisa, a ANVISA informou quais eram as principais patologias que requisitaram medicações à base de canabidiol, entre os anos de 2016 a 2018, sendo o resultado alarmante, ficando a epilepsia no 1º lugar do ranking:     Apesar dos avanços paulatinos, em que vêm permitindo a importação de medicamentos à base de Canabidiol, até a presente data, nenhum medicamento foi incorporado pela União a lista do SUS. O alto índice de epilepsia refratária, que são resistentes a medicação disponível no sistema de saúde, bem como a eficácia do CBD, faz com que sejam repensadas as políticas públicas de saúde. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, prevê que incumbe aos entes públicos envolvidos de cuidarem da saúde e assistência pública (art. 23), sendo a saúde um direito social de todos (art. 6º), cabendo ao Estado garantir, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Além disso, no texto constitucional, em seu art. 198, I, fez previsão de que as ações e serviços públicos de saúde devem contemplar atendimento integral, não fazendo em nenhum momento restrição aos medicamentos ou forma de tratamento a serem utilizados. Por outro lado, para o sistema de saúde há reflexos em redução de custos, eis que pacientes com convulsões refratárias graves irão reduzir o número de internamento em hospitais e custos com ambulâncias, por exemplo[31].   CONCLUSÃO O canabidiol é um canabinóides que tem demonstrado sua eficácia como um anti-convulsivo. A medicina vem considerando o uso do CBD como uma alternativa viável aos tratamentos tradicionais fornecidos pelo SUS para os pacientes portadores de epilepsia. Apesar da evolução quanto a permissibilidade de aquisição de tais produtos, tal medida ainda é insuficiente, face aos diversos entraves burocráticos da importação. Por outro lado, mesmo com a importação, são medicações custosas à população, o que, por vezes, acaba sendo um fator impeditivo na sua obtenção, impossibilitando a concretização do princípio da dignidade humana, previsto constitucionalmente. O presente trabalho propõe então que o poder público repense nas suas políticas públicas, face às evidências demonstradas, analisando-se o custo x benefício do canabidiol, para que seja incluída no rol do SUS.
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Os Desenvolvimentos e Obstáculos Que a Inteligência Artificial Vem Enfrentando na Medicina e no Direito
RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão das ideias apresentadas no primeiro dia do ‘’III Congresso Internacional de Biodireito e Desenvolvimento Tecnológico – A Interface entre o Direito e a Medicina’’ ocorrido na Universidade Presbiteriana Mackenzie, com um foco especial na inteligência artificial. O encontro teve por finalidade discutir como a tecnologia vem alcançando a área da saúde para propor soluções que facilitem o trabalho dos profissionais da saúde, e que ao mesmo tempo não venham a ser um entrave com equívocos médicos e tampouco um fermento de intervenções jurídicas.
Biodireito
INTRODUÇÃO No decorrer do último século, foi nítida a evolução da tecnologia e consequentemente das mudanças que ela trouxe para a sociedade em inúmeros aspectos. Na área da saúde, viu-se necessário o desenvolvimento dessa ciência, visto que a medicina tende a se aprimorar cada vez mais devido a sua importância e necessidade dentro do contexto global atual. Essa erupção de conhecimentos tecnológicos que foram dispostas aos médicos, principalmente nas áreas médicas-hospitalares e ambulatoriais, não deram intervalo de tempo suficiente para que estudos mais aprimorados e incisivos fossem realizados para uma completa regularização. Consequentemente, muitas dessas inovações médicas, ainda hoje, trazem questionamentos e desconfianças quanto a seguridade. A inteligência artificial é um dos apêndices que estão atingindo a medicina e o direito ao mesmo tempo. Para RICH (1988) a IA pode ser definida como ‘’o estudo de como fazer os computadores realizarem tarefas em que, no momento as pessoas são melhores.’’. Desse modo, compreende-se que essa tecnologia tem a capacidade de armazenar e manipular os dados e conhecimentos que são coletados, podendo gerar experiência com esses ‘’estudos’’. RICH SCHUTZER (1987) propôs um diagrama que visa exemplificar a relação dos componentes de funcionamento da inteligência artificial, como podemos ver na figura 1. Por ser uma inovação tecnológica que imerge em potenciais que desmembram o acompanhamento humano, há uma simulação do ser humano em seu funcionamento. Portanto há muitas questões éticas, morais, jurídicas e de segurança envolvidas nessa discussão, o que gera muitos desdobramentos. Entretanto, apesar desses reflexos trazidos pela rápida evolução científica, muitas importantes técnicas e máquinas foram desenvolvidas para a área médica. Durante esse artigo serão citadas algumas dessas grandes descobertas, que não apenas trouxeram um grande impacto positivo no que tange á praticidade de atendimentos médicos, quanto nos resultados econômicos que veem a trazer. De igual modo, FREITAS DRUMMOND (2007) aponta que as mudanças que a tecnologia proporciona na medicina podem ser tanto benéficas quanto nocivas á população como um todo, ‘’o setor saúde tem características peculiares que, de um lado o vincula intimamente ao desenvolvimento científico-tecnológico, gerando impactos na economia e na sociedade em geral e, de outro, promove consequências diretas sobre a saúde individual e na qualidade de vida das populações.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007, P.25)   A palestrante Kátia Galvane[2] teve por princípio discorrer em sua apresentação sobre o conceito de Data-Driven Intelligence, que nada mais é do que a inteligência baseada em dados. Entretanto, antes de se aprofundar nesse tema, Kátia recorre às premissas da tecnologia e ciência para chegar ao seu ponto de vista a favor do progresso científico. Em um país com a densidade demográfica que o Brasil possui (25.18 pessoas por km2), seria muito difícil oferecer atendimentos médicos específicos e de qualidade para todas as regiões, ainda mais para as áreas mais remotas do país. Muitas das vezes, pacientes com sintomas simples de serem decifrados e com casos muito comuns não tem condições, tanto econômica quanto de locomoção e tempo para conseguir uma orientação médica direta. Portanto, com a evolução tecnológica e a inteligência artificial pensou-se na criação de um mecanismo que pudesse dar suporte para as pessoas que necessitem de uma orientação médica simples que não requeresse uma visão próxima e aprofundada desses casos. Há uma diferença entre orientação médica e consulta médica que cabe citarmos. A orientação médica é o meio pelo qual uma pessoa pode tirar dúvidas sobre sintomas simples, remédios e receber auxílio em caso de situações emergenciais. Já uma consulta médica, segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina) ‘’compreende a anamnese, o exame físico e a elaboração de hipóteses ou conclusões diagnósticas, solicitação de exames complementares, quando necessários, e prescrição terapêutica como ato médico completo e que pode ser concluído ou não em um único momento.’’ Portanto, a consulta médica não será feita a distância com o crescimento da tecnologia, mas a orientação sim. Data-Driven Intelligence é o conceito que une a inteligência artificial e o aprendizado de máquinas. Em outras palavras, LOBO (2007) define esse termo como: ‘’a inteligência artificial em medicina é o uso de computadores que, analisando um grande volume de dados e seguindo algoritmos definidos por especialistas na matéria, são capazes de propor soluções para problemas médicos.’’ (LOBO, 2007, p.187). Esse sistema vem ajudando a área da saúde a ser mais imediata, já que facilita tanto a vida dos pacientes quanto dos médicos. Vemos as seguintes aplicações da IA na saúde: A cirurgia robótica é uma das gigantes inovações da Inteligência Artificial e que vem sendo usada nos hospitais mais modernos do mundo. Essa técnica consiste na substituição das mãos humanas para a realização de procedimentos cirúrgicos. Há um dispositivo de câmera que realiza a movimentação e visão do médico, e um dispositivo motor que é responsável pelo instrumental cirúrgico que o médico irá simular como se tivesse realizando a cirurgia na pessoa, porém em um outro ambiente. O uso de impressoras 3D na área médica é também uma grande descoberta. Hoje em dia é possível ‘’imprimir’’ órgãos humanos de protótipos com características muito reais e similares às humanas, e portanto, realizar transplantes de órgãos e demais usos que substituam a utilização de órgãos realmente humanos. Essas impressoras utilizam células (retiradas de cada paciente e multiplicadas por células-tronco) para imprimir órgãos que sejam necessários. Outra, e não menos importante novidade que a tecnologia nos proporcionou foi a Telemedicina, que é uma especialidade médica que oferece serviços e assistência médica a distância por meio da tecnologia. Ela tem grande importância nos dias atuais devido a praticidade e rapidez, além de ser muito benéfica para as instituições de saúde e para os pacientes. A prontidão de ter um robô para auxiliar com perguntas básicas que podem ser resolvidas de maneiras simples e pode diminuir os atendimentos em hospitais, além de evitar a exposição de pessoas a um pronto-socorro que pode conter diversas doenças virais no ambiente. É oportuno lembrar que a telemedicina, apesar de benéfica, não substitui o tradicional atendimento médico, porem é uma potente ferramenta para os médicos. FREITAS DRUMMOND (2007) ainda salienta que ‘’as tecnologias modernas só estarão plenamente justificadas se estiverem condicionadas a uma efetiva melhoria da qualidade de vida e da saúde do ser humano, e não representar uma forma de dominação e usurpação da cultura médica pela máquina ou, ainda, pela submissão do paciente à ideologia do cientificismo ou à lógica de mercado, que contribuem para a ampliação dos lucros da indústria da saúde, enquanto se olvida de avaliar prudentemente a relação entre custo, riscos e os possíveis benefícios a serem auferidos pelo paciente.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007 p.31) Cabe citar também um elemento da tecnologia que se imerge em todos as questões tecnológicas: os dados. Na área da saúde, os dados são fundamentais pois são através deles que são compiladas todas as informações de pacientes, casos, sintomas, soluções, etc. Desse modo, quando se sabe, por exemplo, em que bairro certo doença é mais predominante; qual o sexo, faixa etária que mais contraí esse tipo de doença, cria-se uma reunião de informações que serão extremamente úteis para dar orientações para um paciente. A isso damos o nome de Data Science, que é o ato de reunir dados adjacentes à tomada de decisões, enriquecendo os dados para fazer análises assertivas. Ainda sobre Data Science, segundo CURTY (2008) ‘’Como resultado destas transformações na ciência e no mundo dos negócios, e como forma de responder às demandas existentes, observamos a expansão de uma área de estudo, relativamente recente, interdisciplinar e intensivamente computacional: a ciência de dados (data science). A ciência orientada a dados se vale do potencial de robustas ciberinfraestruturas de informação e comunicação, incluindo tecnologias de grids, e padrões que possibilitam a interoperabilidade e a interligação de dados (linked data) (…) para a resolução de problemas práticos e reais.’’ (CURTY 2008, p.1) Todavia, ao se pensar sobre esses dados e o amparo que exercem na medicina, é aberta uma discussão: qual a confiabilidade para se apoiar nos resultados desses compilados de dados? SABBATINI (1993) explica um dos motivos pelos quais é tão difícil confiar 100% nos dados coletados para a medicina: ‘’Um dos obstáculos ao maior uso de sistemas de apoio à decisão médica é a dificuldade em se criar e atualizar a base de conhecimentos. Muitas das tarefas associadas à decisão são de difícil sistematização e caem no domínio do que chamamos problemas mal definidos, ou seja, que não podem ser expressos por formalismos matemáticos, estatísticos ou lógicos.’’ (SABBATINI 1993, p.6) Na contramão das diversas dificuldades que o sistema de dados enfrentem, devemos nos atentar que os dados são o novo petróleo, é um ‘’mineral’’ muito valioso que se não for refinado não vale ser usado. Isto é, os dados podem ser usado para inúmeros fins que podem trazer benefícios, entretanto, se esses dados não forem analisados, enriquecidos e monitorados, para nada serve eles. É necessária que dados coletados sejam utilizados com muita sabedoria e inteligência. LOBO (2007) vê o uso dos dados como uma potencial faísca para fermentar um avanço na medicina, pois segundo ele, ‘’Um sistema único e padronizado de dados em saúde poderia ser o trunfo essencial a garantir a qualidade da atenção prestada em saúde no Brasil.’’ (LOBO, 2017, p.190). É claro o ponto evolucionista que Lobo enxerga desse elemento. Ao se compartilhar dados para a comunidade ética, muita informação pode ser extraída de casos, e portanto, gerar proveitos acima disso. Muitos autores, tanto nas áreas médicas, quanto na área jurídica defendem o uso de dados para fortalecer a tecnologia. DONEDA ET AL (2018) acreditam que ‘’A utilização de dados pessoais para alimentar os novos sistemas de inteligência artificial e a sua utilização para tomar decisões proporcionam uma acurácia bastante significativa para um número crescentes de aplicações.’’ (DONEDA ET AL, 2018, p.3) Por fim, há um exemplo prático que apoia uma defensa ponderada da tese que a Data-Driven Intelligence é promissora: o trabalho das enfermeiras. Em uma pesquisa realizada pela sua empresa em um hospital privado de classe média-alta de São Paulo, verificou-se que as enfermeiras estavam realizando 70% de atendimentos não assistências, que são aquelas tarefas que não são expressivamente urgentes e não necessitam de uma comunicação presencial do profissional como pedir uma água, tirar dúvidas e etc. Assim, apenas 30% dos atendimentos realizados pelos enfermeiros se tratavam de questões assistenciais. Percebeu-se, dessa forma, que um robô poderia substituir essas funções meramente simples e assim facilitar a vida dos enfermeiros e aumentar a disponibilidade deles para inquisições que necessitem a presença deles. Portanto, foi criado um robô-aplicativo que fica nos quartos hospitalares e que atende as questões não assistências, e até então esta demonstrando sucesso e trazendo diversos benefícios para o hospital em questão. O sistema de inteligência artificial, dessa maneira, além de trazer rapidez em análises liberou o tempo dos enfermeiros, podendo esses exercerem funções assistenciais.   Samanta Dall’ Agnese[3] resgata as ideias expostas anteriormente por Kátia Galvane para observa-las sob a ótica de um profissional da saúde, e saber na prática, como a tecnologia está impactando no dia-a-dia do médico. Levando-se em conta o que foi observado, como o relato é feito por uma médica, é possível extrair por meio de sua fala se a intervenção da tecnologia está auxiliando positivamente o trabalho deles. Para sustentar a tese de que a tecnologia está contribuindo a área médica podemos citar um desafio que é enfrentado todos os dias nos hospitais: a gestão de espaço do centro cirúrgico. O centro cirúrgico de um hospital pode ser visto como uma das áreas mais complexas dentro meio hospitalar. Isso porque, para que essa unidade funcione com excelência é necessária uma boa gestão, pois é necessária muita cautela e atenção em vários aspectos logísticos para alocar procedimentos e profissionais em uma área muito inesperada que funciona 24 horas por dia nos sete dias da semana. Como título de exemplo, podemos citar cirurgias que tiveram complicações e ultrapassaram o tempo que era planejado, ou até uma cirurgia que foi necessária médicos de outras áreas durante o procedimento. DUARTE ET AL (2006) apontam que ‘’o bom desempenho de um centro cirúrgico está diretamente relacionado com a qualidade de seus próprios processos e com os processos dos serviços que o apoiam, como consequência de uma combinação entre instalações físicas, tecnologia e equipamentos adequados, operados por mão de obra habilitada, treinada e competente.’’(DUARTE ET AL, 2006, p.64). Os autores médicos entendem que, para que haja um funcionamento prático e funcional de um centro cirúrgico, diversos fatores são colocados na balança, e no final acabam dependendo da tecnologia. Portanto, um programa foi desenvolvido para que organizasse a dinâmica e disposição das cirurgias nos centros cirúrgicos. Consequentemente percebeu-se que a rotina cirúrgica se tornou mais prática com uso desse sistema e evitou diversos entraves que pudessem acontecer diante da movimentada área. Samanta também usa como exemplo de evolução tecnológica na medicina o uso de aplicativos que auxiliam no exame dos pacientes, principalmente para a área em que é especialista, a Medicina do Sono. A Polissonografia é um exame médico realizado em pacientes que possuem distúrbios de sono, como a apneia. O exame consiste no paciente ir até uma clinica passar a noite com aparelhos que vão monitorar a qualidade do sono. Entretanto, o fato de ter que dormir em uma clínica pode atrapalhar a realização do exame, e consequentemente o resultado do exame. Desse modo foi criado um aplicativo que faz esse monitoramento pelo próprio celular do paciente sem ter que sair do conforto de sua casa. Todos esses exemplos de inovações tecnológicas aplicadas na saúde tem um significante impacto também na economia. FREITAS DRUMMOND (2007) salienta que ‘’Os estudiosos da economia da inovação têm apontado para uma relação estreita entre ciência e tecnologia no setor saúde, cujo desenvolvimento tem propiciado melhoria tanto na quantidade quanto na qualidade de tratamentos e nos métodos de diagnóstico, embora esta relação seja, concomitantemente, responsável pela elevação dos custos da assistência médica.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007 p.29). Por conseguinte, Albuquerque et al promovem uma dicotomia para analisar o efeito da economia inserido na evolução da tecnologia. Por um lado os autores esclarecem que a saúde deve ser vista como um fator mundial que necessita de constantes pesquisas de aprimoramento, e por outro lado resgata a necessidade de avigoramento de incentivos a pesquisas científicas em países em desenvolvimento, não podendo esses estarem distantes do avanço tecnológico. A medicina deve ter uma visão otimista da tecnologia, e não pessimista. Os médicos não podem ter uma postura passiva da ascensão científica e ficarem vendo essas mudanças acontecendo sem medir esforços, sendo assim necessária uma abordagem ativa desses para se atentarem das mudanças e consequentemente estuda-las e aplica-las. O desejo que os médicos devem ter diante do atual cenário tecnológico é de que essas novidades possam criar ferramentas científicas para ajudar a gerir melhor as instituições médicas. LOREZENTTI ET AL (2012) reconhecem o ceticismo por parte da turma médica quanto a tecnologia: ‘’O setor saúde (…) tem sido sensível à incorporação tecnológicas do tipo material, para fins terapêuticos, diagnósticos e de manutenção da vida, utilizando os conhecimentos e produtos da informática, novos equipamentos e materiais , mas tem sido menos agressivo na utilização de inovações do tipo não material, em especial das inovações no campo da organização e relações de trabalho.’’ (LORENZETTI ET AL, 2012 p.436). É notável pela síntese do autor a ceticismo dos médicos nas inovações em suas áreas. Todavia, é necessário um panorama muito mais confiante tendo em conta todos os saldos que retornam pelo uso de tecnologias que facilitem o trabalho dos médicos. Essas inovações, isto posto, devem ser enxergadas como sendo algo que aproxima os médicos dos pacientes (e não que os afaste) propiciando um ofício mais eficiente da medicina.   Lara Rocha Garcia[4] discorre das barreiras que a Inteligência Artificial vem entretanto no que tange ás questões legais e regularização nos países. Com a ascensão da IA nos diversos setores, muitas empresas viram uma grande oportunidade de investimento para que em um futuro não distante essa tecnologia possa ser aplicada em suas instituições. Entretanto, por ser uma realidade contemporânea, os países não possuem um regimento que controle e limite a Inteligência Artificial. A Comissão Europeia foi a primeira a dar um passo a frente no quesito legal. Em 2019 apresentou as diretrizes para o desenvolvimento e implementação de padrões éticos de Inteligência Artificial. Dentro as principais normas formuladas, destacam-se: – Intervenção e supervisão humana: os sistemas de IA devem possibilitar sociedades equitativas, apoiando a ação humana e os direitos fundamentais, e não diminuir, limitar ou desorientar a autonomia humana. – Robustez e segurança: a IA confiável requer que os algoritmos sejam seguros, confiáveis e robustos o suficiente para lidar com erros ou inconsistências durante todas as fases do ciclo de vida dos sistemas de IA. – Privacidade e governança de dados: os cidadãos devem ter controle total sobre seus próprios dados, para que não sejam usados para prejudicá-los ou discriminá-los. – Transparência: a rastreabilidade dos sistemas de IA deve ser assegurada. – Diversidade, não discriminação e equidade: os sistemas de IA devem considerar toda a gama de habilidades e requisitos humanos, garantindo a acessibilidade. – Bem-estar social e ambiental: os sistemas de IA devem ser usados para melhorar a mudança social positiva e aumentar a sustentabilidade e a responsabilidade ecológica. – Prestação de contas: mecanismos devem ser colocados em prática para garantir a responsabilidade pelos sistemas de IA e seus resultados. Entende-se, pelas diretrizes que a Comissão Europeia publicou, que a há um reconhecimento que a Inteligência Artificial é irrefreável e que vai mudar o bem estar social das pessoas e deve interferir em 3 componentes: legal, ético e sólido. No quesito legal, a IA deve ser pautada nos direitos legais e na legislação que cada país segue; Na ética deve haver uma prática dos princípios constitucionais e no sólido resgata o tópico quanto a segurança tecnológica. Não obstante, todos esses quesitos são apoiados em alguns imperativos importantes: o respeito á autonomia humana, a prevenção de danos, a equidade  e a explicabilidade. Como bem citado por DONEDA ET AL (2018), ‘’O debate sobre robôs inteligentes, cada vez mais, importa para o Direito. Conceder à máquina uma personalidade jurídica autônoma, nem que seja para dotá-la de patrimônio para compensar eventuais danos, é uma solução que desponta seriamente no horizonte. Todavia é importante ir além da dinâmica da responsabilidade civil e investigar o que significa dotar robôs inteligentes de personalidade à luz do ordenamento jurídico.’’ (DONEDA ET AL, 2018, p.9). No Brasil, assim como em muitos outros países, não há ainda uma regulamentação incisiva quanto ao progresso e implementação de IA. Da mesma forma, o uso dessa ferramenta tecnológica apesar de benéfica deve ser acompanhada de ordenações que determinem até onde ela pode chegar. DAMILANO (2019) aponta que ‘’o uso da IA deve ser regulamentada internacionalmente para fixar padrões e limites ao seu uso, resguardando os direitos humanos e fazendo com que a máquina de fato seja utilizada para ajudar e servir aos seres humanos e não torná-los escravo dela.’’ (DAMILANO, 2019, p.17) Na área da medicina, a Inteligência Artificial vem sendo aplicada por robôs em diversos setores. Um dos mais polêmicos uso da IA na medicina se da pelo uso do Symptom Checker, pois trás diversos pontos de vista quanto a confiabilidade desse dispositivo e os possíveis resultados legais de um mau uso deste. O Symptyom Checker consiste no uso de programas que podem aprender através de dados médicos, livros técnicos, diagnósticos, pesquisas e artigos vários padrões e casos para a tomada de uma decisão. Ao analisar um novo caso, este analisa todos esses dados ‘’estudados’’ e coletados para chegar a um diagnóstico. Ou seja, é um ‘’robô médico’’ que pode analisar pacientes e possivelmente prescrever remédios para tal problema. No entanto, ainda há muitas lacunas a serem resolvidas antes de uma implementação de fato da Inteligência Artificial na área da medicina. LORENZETTI ET AL (2012) citou muito bem algumas etapas necessárias para chegar a um melhor aproveitamento dessa tecnologia: ‘’Faz-se necessário desenvolver, fortalecer, aplicar e exigir que as tecnologias e inovações tecnológicas sejam submetidas permanentemente a critérios éticos para evitar e/ou minimizar as maleficências das mesmas.’’ (LORENZETTI ET AL, 2012, p.438) A ética no uso da Inteligência Artificial interage tanto com a esfera jurídica quanto aos sujeitos que as utilizam. DONEDA ET AL (2018) veem que ‘’O recurso a elementos éticos pode ainda proporcionar a possibilidade de considerar com o devido cuidado situações que ainda não possam ser efetivamente objeto de regulação ou de atuação direta de institutos jurídicos, mas que, seja pela importância dos sujeitos e valores envolvidos, seja pelos seus potenciais efeitos, demandam uma resposta ágil e ponderada sobre opções a serem tomadas.‘’ (DONEDA ET AL, 2018, p.15).   CONCLUSÃO De acordo com RIBEIRO (2008), ‘’a inteligência artificial é uma ciência multidisciplinar que busca desenvolver e aplicar técnicas computacionais que simulem o comportamento humano em atividades específicas” (RIBEIRO 2008, p.8). Na medicina, entretanto, o fato de ‘’simular o comportamento humano’’ ainda é uma realidade que carrega muitas inconveniências de diversos lados. É possível confiar em um robô ? Quem responde pelas atitudes de uma inteligência não-humana? O quão longe essa inteligência pode chegar ? A área médica, apesar de indagar todas essas questões, não pode considerar que evolução da tecnologia na medicina seja um problema, pois diante de todos os tópicos trabalhados do decorrer desse trabalho tem-se uma visão mais confiante do assunto. COIERA (1998) cita que ‘’uma das tarefas mais importantes que os desenvolvedores de sistemas baseados na IA enfrentam hoje é caracterizar de forma acurada os aspectos da prática médica que são mais adequados para a introdução de sistemas inteligentes.’’. O autor ressalta a dificuldade que a tecnologia enfrenta em caracterizar de forma acurada os casos por ser um sistema que se desenvolve diariamente. Devido a falta de parâmetro que a Inteligência Artificial vem tomando nos dias atuais, podemos considerar que ela ainda irá gerar uma série de diligências mundiais que visaram estabelecer diretrizes éticas que possam regular a direção dessa fatia da tecnologia. Acredita-se que com essas futuras e efetivas padronizações, a IA poderá ser segura, no que diz respeito a supervisão do ser humano, a confiabilidade dos dados e algoritmos sendo usados, e acima de tudo isso, o controle e acesso pelas pessoas que utilizem. Por fim, as diversas áreas englobadas estão em constate interação com o direito, e por isso não devem ser considerados isoladamente, mas sim, suas relações de interdependência -mesmo que essas sejam heterogêneas-. Assim, tanto a evolução da tecnologia e suas divisões quanto ao desenvolvimento da inteligência artificial (principalmente na medicina) são permeados por essa relação estreita com o direito, e é essa associação que faz com que ambos os conceitos se preservem com importância e ao mesmo tempo se modernizem.
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